quarta-feira, 9 de julho de 2014

Sobre a Normalidade

As sirenes são meu despertador. Lembro-me da primeira vez em que as escutei. Há mais de três anos. Eu era um homem diferente então. Um homem normal. Eu era a própria definição de Normalidade. Normalidade.  Um conceito engraçado. Contra-intuitivo. Normalidade sugere alguma coisa estática. Parada no tempo e no espaço. Mas não é. A normalidade pode ser extremamente mutável. Mas tem uma regra pra continuar sendo chamada Normalidade: tem que mudar devagar.
Devagar o bastante pra passar despercebida por todo mundo. Sai de um estado primário de Estranheza pra devagarinho tomar uma nova forma. E um belo dia você acorda e lá está ela. Aquela Estranheza toda de repente desaparece. Você se acostuma com ela. Você e todo mundo aceitam ela. E num passe de mágica, a Estranheza se torna a Normalidade. A Nova Regra. A nova Ordem.
Assim foi com o Toque de Recolher. A primeira vez que ele tocou foi estranho. Na centésima vez foi normal. Assim foi comigo. A primeira vez que matei alguém, foi estranho. Depois, foi normal. Porque se não for normal... Será o meu fim.
Quinto toque das sirenes. Só faltam mais dois. Já começo a ficar impaciente. Pelas frestas das persianas vejo as pessoas correndo pra dentro de suas casas. Acendo meu cigarro. Noite de lua cheia. As pestes ficam mais fracas nessa época. Pelo menos é o que dizem. Não tenho muita certeza se acredito. Mas me conforta um pouco imaginar que posso estar tendo alguma vantagem em relação a elas.  Falta pouco agora. Hoje vai ser uma noite longa. O esquema foi repassado mais de mil vezes. Por cartas e sussurros. São as únicas formas de comunicação segura hoje em dia. Quase as únicas formas possíveis. Nenhuma máquina funciona direito desde que elas vieram. Sinto falta do meu tablet.
O sétimo e último toque das sirenes. É isso. Chegou a hora. Os últimos raios de sol se despedem no horizonte. Rezo um Pai-nosso. Só por costume. Pelos velhos tempos. Pela Normalidade.
Pego as armas e o casaco. Reconto as balas. Bombas caseiras. Checadas. Repasso o plano mentalmente. Pela última vez. Tomar o velho elevador pro subsolo. De lá seguir pelos esgotos onde devo encontrar os outros. Devem ser vinte homens. Vinte filhas da puta que não tem nada mais a perder. Tirando a própria carcaça. Vinte corações rebeldes que não aceitam as coisas como estão. Vinte inimigos da Normalidade.
Antes de tomar o elevador, dou uma última olhada pela janela. Ao longe, vejo mantos brancos voando na direção da Prefeitura. Vindos de todas as direções. Os berros agourentos ecoando pelos prédios. É verdade então. Vai ser hoje. Tento resistir ao impulso extremamente normal de pegar os binóculos para contemplar. Tenho medo de fraquejar se olhar mais de perto. Olho mesmo assim. Uma nuvem branca composta de trezentas ou trezentas e cinquenta delas voando no céu que mal ficou escuro. Nunca vi tantas ao mesmo tempo. Uma delas olha na minha direção. Com aquela cara podre. Os olhos mais velhos que o Tempo. Como se adivinhasse o que eu vou fazer.
Largo os binóculos e vomito com força no chão. Maldita Normalidade. Sempre te perturba quando você menos precisa dela. Puxo a fotografia do bolso. Lá está. Minha pequenina sorrindo. Eterna e intocável. A salvo. Pelo menos no meu bolso. Limpo o resto de vômito da boca. Forças revigoradas. Faça por ela. Lute por ela. Morra por ela. Porra. Mate por ela. Mate quantas puder por ela. As portas do elevador se fecham devagar atrás de mim. Fecho os olhos e acaricio as armas. A imagem de minha pequena ainda impressa em minhas retinas. Dando-me forças. Dando-me combustível pra fazer o que for preciso. Quer dizer, é o que se espera de um pai normal, não é?
Talvez tenha me precipitado. A Normalidade pode não ser tão ruim assim afinal.



terça-feira, 1 de abril de 2014

O esquerdista

O tapa na cara me trouxe de volta. Pra onde? Você me pergunta. Depois do terceiro dia eles me convenceram. Pro inferno. Eu passeava pelas camadas do inferno entre meus curtos períodos de sono e a forcada vigília. Ao invés de Dante, meu condutor era o diabo. O diabo vestia uniforme, bota e óculos escuros. E sempre fazia questão de me acordar. Os ajudantes do diabo gritavam pra tentar me fazer falar alguma coisa que não tenho mais a capacidade de compreender.
O cheiro de carne queimada é quase gostoso. Não lembro quando foi a última vez que me deram de comer. Parece uma eternidade. Não tenho certeza se lembro do gosto de comida alguma. Mas do cheiro sim. Churrasquinho. Bem passado.
Já cheguei num ponto onde não sinto mais dor. Não sinto nada. Nem o tempo passando em segundos angustiantes pontuados pelos meus gritos. No começo, achei que fosse mais alguém gritando do quarto ao lado. Pode ter sido só uma impressão. Não e possível que alguém cometa tamanho atentado à vida humana no mesmo dia. Ao mesmo tempo. No quarto ao lado. Agora estou convencido de que sou eu mesmo. Sou eu quem grita. Embora não sinta a dolorosa vibração de minhas cordas vocais. Embora meus sentidos embaralhados não saibam mais discernir ou assimilar nada da realidade.
A cada choque uma nova lembrança. O dia em que entrei pra faculdade de Direito. O dia em que me filiei ao partido. O dia em que minha filha nasceu. A cada nova corrente que atravessava meu corpo como uma onda…Mais uma lembrança parecia se esgueirar de mim. Pra sempre.
Meus olhos reviravam nas órbitas e tinha a certeza de que podia enxergar o lado oposto. Pra dentro do meu cérebro. Eles riam de mim. O diabo e seus ajudantes. Riam e cuspiam e batiam. Com suas botas e cassetetes. Eles, burros que eram não percebiam. Eu não sentia mais. Eu não sentia dor. Eu era a dor.
Um deles agarrou meu braço enquanto o outro me segurava com um mata-leão. Meus olhos revirados tentaram fixar o novo foco de sua sandice. Minha mão. Ou a coisa que eu chamava de mão. Costumava usar para tocar violão. Um deles puxou um alicate e o fixou bem embaixo da unha. Pressionou e puxou uma vez. Gritei. Ou alguém gritou. Não tenho certeza mais. Não doeu. Já disse. Não sinto mais tal coisa. Gritei pelo horror da visão. Aquela coisa que fazia parte de mim tirada assim. Sob gritos inteligíveis e mais socos na boca.
Mais interrogações. Mesmo que pudesse compreender alguma palavra, não poderia responder. Não tinha mais voz. Tenho a estranha sensação de me ver de cima. Amarrado àquela cadeira de metal. Um rosto desfigurado. O pênis para fora das calças com um pedaço de arame enfiado no buraco por onde costumava urinar. O diabo cansou da brincadeira. Ou se convenceu de que não sei (ou não posso) dar as respostas certas as suas perguntas sem fim.
Virou de repente. Encostou o revólver na minha têmpora e atirou uma vez. O jorro de sangue e miolos sujou seu uniforme. Como sei disso? Já não sei explicar. Só sei que apesar de contemplar meu corpo caído sendo arrastado como um boneco pelos outros soldados…Ainda posso ouvir o som de gritos. De muitos e muitos outros gritos. Vinham dos quartos ao lado, afinal.
O inferno é um lugar horrível.



domingo, 16 de março de 2014

Perfume - Parte Três

          Decidi tirar uns dias de folga do trabalho. Liguei e o chefe se limitou a desejar um "melhora logo e volta que eu preciso de você". Não sei o que deu nesse cara. Talvez estivesse com pena de mim. Não tenho certeza de quantas pílulas tomei escondido de mamãe.
          Talvez tenha exagerado na dose dessa vez. A sensação de estupor se apoderou de mim. Como se estivesse num carrossel. Rodando devagar. Nos poucos momentos em que mantinha os olhos abertos via tudo borrado. Como num sonho. Mamãe encheu minha antiga cama de solteiro com travesseiros felpudos que eu adorava quando era criança. Pelo cheiro de mofo diria que a velha não os lavou desde que saí de casa. Mas tudo bem. Pelo menos teve o bom senso de abrir todas as janelas da casa pra renovar o ar.Era bom ter alguém por perto de novo. Cuidando de mim. Se preocupando. Fazendo meu almoço.
          Pela primeira vez em meses consegui não pensar no meu luto. Consegui me entregar àquele sono induzido. Sem sonhos. Pelo que me lembro. Dizem que a gente sonha toda noite. Mas só lembra de vez em quando. Talvez isso explique porque sempre acordo com a sensação de ter chorado por horas a fio. Talvez eu continue sonhando com a minha angústia. Mas pelo menos meu consciente não está mais prestando atenção.
          Mamãe fica fora boa parte do dia. Mas aparece religiosamente na hora das refeições pra me obrigar a comer alguma coisa. Você esta um esqueleto. Ela insiste. E me empurra alguma gororoba que inventou de preparar na cozinha. Fica ali divagando sobre as eleições, as últimas intrigas da Paróquia e o preço do pão. Como sempre. Eu faço de conta que escuto olhando de relance pra alguma novela reprisada na tevê.
          Pendurada na parede do corredor, uma velha foto de papai. Sempre fardado. Servira ao Exército e me batia na bunda com uma vara de pescar algumas vezes por semana. Algumas vezes com motivo. Mas na maioria das vezes não. Morrera jovem no aflorar de seus quarenta anos. Minha idade hoje. Cirrose. Nunca senti sua falta.
          Por causa dele jurei que nunca colocaria uma gota de álcool na boca quando crescesse. Quebrei a promessa aos dezenove anos. O motivo? Diana. Já era apaixonado por ela desde que ela se mudou pro Méier, mas na época ela decidira namorar um idiota lá do bairro. Quando eu soube, acabei sozinho com duas garrafas de cerveja. Veja só. Vomitei tanto que mamãe pensou que fosse morrer. Quando Diana soube, desmanchou o namoro com o idiota e veio me procurar. Nunca mais nos separamos.
          Meu estupor não me impedia de tomar mais pílulas. Os eventos da noite anterior haviam sido quase apagados de minha mente. Mas alguma parte do fundo da minha alma me lembrava de tomar mais pílulas. Pra ter certeza absoluta de que não sentiria o perfume novamente. Foi neste estado que passei pelos dois primeiros dias. Só era interrompido pelo frio que entrava pelas janelas abertas a noite e por mamãe que resolvera entrar no quarto a cada cinco minutos na segunda tarde de minha estadia.
          Não chegava a vê-la de fato. De olhos fechados, ouvia seus passos pesados no quarto de um lado para o outro. Uma vez ou talvez duas, pusera a mão em minha testa e afagara meus cabelos molhados de suor. A mão estava tão gelada que eu abria acordava sobressaltado. Mas quando abria meus olhos, ela já havia ido embora e só me deparava com a velha foto de papai no corredor. As pílulas estavam mesmo me deixando lento. Mesmo assim, nunca esquecia de tomá-las. Especialmente à noite. Especialmente quando o velho relógio cuco da sala marcava vinte e três horas. Como se receasse sentir o perfume. Eu precisava não sentir o perfume.
          E não o senti. Eu acho. Assim como o fato de não nos lembrarmos de nossos sonhos não indicar que não tenhamos sonhamos… Talvez o fato de não me lembrar de ter sentido o cheiro não queira dizer que não o tivesse sentido de fato...
          Naquelas três noites que passei na casa de mamãe não me lembro de ter sentido cheiro algum. Só o de mofo e de feijão queimado. Na terceira noite, antes de me deitar pra dormir, perguntei o porquê do seu rosto tão preocupado. Afinal de contas, eu já me sentia bem melhor. Até pensava em trabalhar no dia seguinte. A velha me acompanhava de um lado pro outro no quarto. Os olhos fundos de olheiras. Quase arregalados. Era uma velha forte. Firme no andar. Firme no falar. Apesar de seu estado de constante preocupação, nunca demonstrava sinais de abatimento como os que mostrava essa manhã.
          Ela não me respondeu. Insisti. Ainda sem dizer nada, a velha passou os olhos pelas janelas e portas todas escancarados. Foi a primeira vez que percebi que estava tudo aberto, apesar do dia friorento de julho.
          _É pra ver se o cheiro vai embora.
          _Qual cheiro mãe?
          _Esse cheiro de perfume. - Foi sua resposta.
          Os pêlos da minha nuca arrepiaram. Nunca falei sobre o perfume com a velha. Olhei sobressaltado para os lados como procurando o cadáver perfumado de Diana. Toda sensação de descanso dos últimos três dias tinha ido embora de repente. Eram nove e quarenta da noite.
           Mamãe me olha ainda mais preocupada. Tenta balbuciar alguma coisa.
          _Está acontecendo com você também, não está?
          _O quê mulher?
          Lentamente ela se volta pra foto de papai no corredor.
          _Acontecendo o que? – repeti.
          _Depois que ele se foi... Aconteceu comigo também.
          _O que? - Eu grito.
          _Anos depois de ele morrer... -A velha se volta pra mim sentando lentamente na cama. Uma cara de desespero que eu nunca vi.
          _Eu ainda sentia o cheiro da cachaça favorita dele toda a noite... - respondeu com os olhos vidrados na fotografia.
          Caio sentado na cama junto à velha. Minhas pernas não têm mais forças. Meus olhos agora colados no retrato da parede também. Sem me voltar pergunto a ela com a voz fraca:
          _Por quanto tempo você sentiu o cheiro?
          Lentamente, ela se volta pra mim. E num sussurro conclui:
          _Filho... Eu nunca deixei de sentir.


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