No primeiro dia a lua amanheceu
vermelha. Ninguém deu muita bola pra isso. Era dia de jogo do Mengão. Os
românticos abusaram do Instagram. Os evangélicos se recolheram em vigília. O
jornal falou que era um fenômeno meteorológico qualquer. No Facebook, culparam
os petralhas. O Meia Hora fez uma capa engraçada sobre o assunto, mas já
esqueci a piada...
No segundo dia, vieram os
gafanhotos. Ou o que quer que fossem aqueles insetos imensos pegajosos que se
juntavam numa única nuvem negra devorando plantações. Uns amigos biólogos
pegaram alguns para analisar. Espécie nova. Resistente. Falaram até em
sequenciar o genoma, sei lá o que é isso. Mas ia ficar caro demais, parece. O
Youtube bombava com vídeos das nuvens negras. Antes de dormir vi um vídeo no
Japão que mostrava uma nuvem passando numa rua cheia de gente e não deixando
nada pra trás. Só um monte de poças de sangue. Fake.
No terceiro dia, veio a Coceira.
Pegou quase todo mundo. Rico, pobre, político, pai de família. Artista, puta, cientista,
esquerdista, vagabundo,até Black Block. Não poupou ninguém. Não é aquela
coceirinha gostosa que dá e passa. É profunda. Persistente. Insaciável. Visceral.
As pessoas na rua andam esfoladas, sempre sangrando. Você continua coçando
mesmo depois da pele ter saído. Mesmo quando já dá pra ver um branquinho do
osso aparecendo ali no braço. Minha sorte é que sempre soube controlar coceira.
Mesmo assim é enlouquecedora. Amarrei minhas mãos e tô digitando com o nariz.
No quarto dia, papai apareceu de
surpresa no quarto com um cabo de vassoura e acertou minha cabeça bem forte. Levantei
tonto e sai correndo. Ele veio atrás de mim com aquela cara assassina, a pele
em carne viva, um gafanhoto preso no cabelo. Empurrei o velho da escada e só
sosseguei de novo quando vi o pescoço torcido. Mamãe não fez nada. Não dava.
Ficava o dia todo mergulhada na banheira cheia de água com gelo pra aliviar a
pele em carne viva. Entrei no Twitter e descobri que não era o único. Os trends:
#PapaiBolado ; #FreudExPliCa; #QuasemorrimeuDeus ; #amoTestamento ; #ToRyca.
No quinto dia não sei o que
aconteceu. O Facebook saiu do ar. Arrancaram a cabeça do William Bonner ao
vivo. Tô perdido no tempo estocando comida, beque e seda no quarto trancado. Ao
longe só consigo ouvir as explosões bizarras e aviões passando rasantes. Os
vizinhos tão saindo de máscara de gás na rua. Pensei que fosse manifestação,
mas acho que é coisa pior, hein. A coceira tá me enlouquecendo. Preciso acender
dez beques por dia pra esquecer ela. O cheiro do corpo de papai tá começando a
me incomodar.
No sexto dia acordei com meu
quarto balançando. O mundo chacoalhou por uns dez minutos. A casa ficou torta.
Levantei e fui lavar o rosto. A água saiu verde da bica. O cheiro parecia vômito
de ressaca; só que pior. Não tem mais água em lugar nenhum, parece. Mamãe
continua na banheira verde com os olhos parados fixos no espelho. O rosto é uma
bolha de sangue onde só se vê os olhos. Coloquei mais gelo pra ela e disse que
tava indo embora de casa. Ela só virou a cara de zumbi pra mim e acenou. Desci
as escadas, pulei o corpo inerte e ganhei a rua. O céu tinha mudado de cor. Um
azul meio esverdeado demais. Era até bonito. Mas se você prestasse atenção...
Aquelas cores geladas lembravam a morte. Mas nem precisava. A morte estava por
toda parte. Gente sanguinolenta se arrastando pela rua. Um cheiro forte
esquisito deixava o ar nauseabundo, pesado. O chão sacudia de quando em quando.
Uma rachadura esquisita tinha brotado no asfalto no meio da São Clemente. Andei
no sentido da praia me escondendo de um grupo de motoqueiros sangrentos que
passavam saqueando tudo, até mulher.
No sétimo dia me enfiei num
buraco escuro entre dois prédios velhos em Copa. Aqui só tem espaço pra mim e o
Ipad. E pra um cachorro magro que fica lambendo meus braços em carne viva. A
bateria tá meio baixa. Resolvi criar um blog pra relatar essa última semana. Pena
que não pega mais WiFi. Mas quando voltar eu posto isso tudo. A galera vai
curtir. Escondido aqui, andei pensando na vida,sabe. Acho que devia ter feito
mais coisas. De repente escrito mais. É até legal esse negócio de escrever. Só
consigo escutar gritos desesperados vindo da rua. O chão continua tremendo e a
fome tá de matar. Aqui dá par ver um pedacinho do céu verde ainda. Alguma coisa
passou por ele fazendo sombra. Pensei que fosse um avião. Mas a coisa rugiu.
Rugiu mesmo, tipo um leão. Tão alto que uma casa na frente tombou de vez. Tô
preocupado com meus amigos do Face. E com a galera da academia. Pensando agora,
tô há mais de uma semana sem malhar. Saco. O rugido voltou, mais alto dessa
vez. Tô meio bolado. Será que vão consertar tudo antes da Copa? Tomara que sim.