quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O Sétimo Dia (Perspectiva de um Imbecil da Era Digital)

No primeiro dia a lua amanheceu vermelha. Ninguém deu muita bola pra isso. Era dia de jogo do Mengão. Os românticos abusaram do Instagram. Os evangélicos se recolheram em vigília. O jornal falou que era um fenômeno meteorológico qualquer. No Facebook, culparam os petralhas. O Meia Hora fez uma capa engraçada sobre o assunto, mas já esqueci a piada...
No segundo dia, vieram os gafanhotos. Ou o que quer que fossem aqueles insetos imensos pegajosos que se juntavam numa única nuvem negra devorando plantações. Uns amigos biólogos pegaram alguns para analisar. Espécie nova. Resistente. Falaram até em sequenciar o genoma, sei lá o que é isso. Mas ia ficar caro demais, parece. O Youtube bombava com vídeos das nuvens negras. Antes de dormir vi um vídeo no Japão que mostrava uma nuvem passando numa rua cheia de gente e não deixando nada pra trás. Só um monte de poças de sangue. Fake.
No terceiro dia, veio a Coceira. Pegou quase todo mundo. Rico, pobre, político, pai de família. Artista, puta, cientista, esquerdista, vagabundo,até Black Block. Não poupou ninguém. Não é aquela coceirinha gostosa que dá e passa. É profunda. Persistente. Insaciável. Visceral. As pessoas na rua andam esfoladas, sempre sangrando. Você continua coçando mesmo depois da pele ter saído. Mesmo quando já dá pra ver um branquinho do osso aparecendo ali no braço. Minha sorte é que sempre soube controlar coceira. Mesmo assim é enlouquecedora. Amarrei minhas mãos e tô digitando com o nariz.
No quarto dia, papai apareceu de surpresa no quarto com um cabo de vassoura e acertou minha cabeça bem forte. Levantei tonto e sai correndo. Ele veio atrás de mim com aquela cara assassina, a pele em carne viva, um gafanhoto preso no cabelo. Empurrei o velho da escada e só sosseguei de novo quando vi o pescoço torcido. Mamãe não fez nada. Não dava. Ficava o dia todo mergulhada na banheira cheia de água com gelo pra aliviar a pele em carne viva. Entrei no Twitter e descobri que não era o único. Os trends: #PapaiBolado ; #FreudExPliCa; #QuasemorrimeuDeus ; #amoTestamento ; #ToRyca.
No quinto dia não sei o que aconteceu. O Facebook saiu do ar. Arrancaram a cabeça do William Bonner ao vivo. Tô perdido no tempo estocando comida, beque e seda no quarto trancado. Ao longe só consigo ouvir as explosões bizarras e aviões passando rasantes. Os vizinhos tão saindo de máscara de gás na rua. Pensei que fosse manifestação, mas acho que é coisa pior, hein. A coceira tá me enlouquecendo. Preciso acender dez beques por dia pra esquecer ela. O cheiro do corpo de papai tá começando a me incomodar.
No sexto dia acordei com meu quarto balançando. O mundo chacoalhou por uns dez minutos. A casa ficou torta. Levantei e fui lavar o rosto. A água saiu verde da bica. O cheiro parecia vômito de ressaca; só que pior. Não tem mais água em lugar nenhum, parece. Mamãe continua na banheira verde com os olhos parados fixos no espelho. O rosto é uma bolha de sangue onde só se vê os olhos. Coloquei mais gelo pra ela e disse que tava indo embora de casa. Ela só virou a cara de zumbi pra mim e acenou. Desci as escadas, pulei o corpo inerte e ganhei a rua. O céu tinha mudado de cor. Um azul meio esverdeado demais. Era até bonito. Mas se você prestasse atenção... Aquelas cores geladas lembravam a morte. Mas nem precisava. A morte estava por toda parte. Gente sanguinolenta se arrastando pela rua. Um cheiro forte esquisito deixava o ar nauseabundo, pesado. O chão sacudia de quando em quando. Uma rachadura esquisita tinha brotado no asfalto no meio da São Clemente. Andei no sentido da praia me escondendo de um grupo de motoqueiros sangrentos que passavam saqueando tudo, até mulher.
No sétimo dia me enfiei num buraco escuro entre dois prédios velhos em Copa. Aqui só tem espaço pra mim e o Ipad. E pra um cachorro magro que fica lambendo meus braços em carne viva. A bateria tá meio baixa. Resolvi criar um blog pra relatar essa última semana. Pena que não pega mais WiFi. Mas quando voltar eu posto isso tudo. A galera vai curtir. Escondido aqui, andei pensando na vida,sabe. Acho que devia ter feito mais coisas. De repente escrito mais. É até legal esse negócio de escrever. Só consigo escutar gritos desesperados vindo da rua. O chão continua tremendo e a fome tá de matar. Aqui dá par ver um pedacinho do céu verde ainda. Alguma coisa passou por ele fazendo sombra. Pensei que fosse um avião. Mas a coisa rugiu. Rugiu mesmo, tipo um leão. Tão alto que uma casa na frente tombou de vez. Tô preocupado com meus amigos do Face. E com a galera da academia. Pensando agora, tô há mais de uma semana sem malhar. Saco. O rugido voltou, mais alto dessa vez. Tô meio bolado. Será que vão consertar tudo antes da Copa? Tomara que sim.


domingo, 26 de maio de 2013

O Cheiro - Parte Um

Hoje outro moleque sumiu da rua.  Um mais magrinho. Ficava sempre lá jogado no canto ou correndo de um lado pro outro com o copo de Guaravita na mão. Falando sozinho. Gesticulava muito. Quase morria atropelado umas vinte vezes por dia. Era assim que ele vivia.
Eu o chamava de Cartolinha. Alguma coisa no jeito dele rir lembrava o velho poeta. Eu faço isso com frequência. Dou nome pra eles. Pode parecer loucura e talvez seja. Mas me dá uma sensação egoísta de bem estar, sabe? Se eu dou nome a eles, eles se tornam um pouco mais reais. Um pouco assim mais humanos, tá me entendendo? Se eu dou nome pra eles, eu garanto algum direito qualquer que eles não tenham tido nunca na vida. Um direito assim de...existir. De ser chamado e tratado que nem gente.
E hoje esse também sumiu da rua. Semana passada foram dois. O Acerola que lembrava o molequinho do “Cidade de Deus” e o Tiaguinho que era a cara do filho de dona Rosineide. Mês passado foram mais uns cinco. O Sem-Dente, o Barriga, O Encrenqueiro, a Ana Maria e a Capitu. Todos naquela fase doida que todo mundo passa entre o final da infância e o começo da adolescência. Onze, doze, quinze anos.Um inferno. Mesmo quando não te negam casa, comida nem roupa lavada.
Mesmo quando o craque não está lá presente carcomendo a sua alma. Inebriando a sua consciência. Transportando os seus medos mais profundos pra algum lugar escuro lá no fundo da tua mente.Fazendo você perder a trilha que te guiava pra você mesmo. Já estive lá. Não é o tipo de lugar que gostaria de voltar. Boa parte do tempo pelo menos. Esta noite, após as duras constatações as quais meus velhos olhos foram guiados, não sei mais. Gostaria de esquecer. De nunca ter visto. De não saber. De nunca ter dado nome a nenhum deles. De nunca ter me importado nem um pouco com coisíssima alguma.
De nunca ter sentido o Cheiro. O Cheiro Maldito que impregna minha janela nesse momento. Entra pelas fossas nasais e toca um sino estridente no meu cérebro, sacode cada refeição da semana que ainda insiste em permanecer nas reviravoltas das minhas tripas. O Cheiro que penetra nas minhas roupas estendidas no varal, que me acorda no meio da noite suando frio. Que atrai todo tipo de mosca esverdeada que eu nunca vi. O Cheiro. Queria nunca ter sentido. Mas depois que senti... Depois que entendi sua procedência, ele nunca mais me deixou. Como se a essência demoníaca tivesse ido morar bem embaixo do meu nariz.
De um dia pro outro, comecei a me dar conta da presença do Cheiro. No caminho pro trabalho. Na Igreja. Na mesa do bar. Em toda parte. Devagarzinho, o Cheiro passou a se tornar uma fascinação minha. Era mau agouro não senti-lo de manhã antes de sair de casa. Eu tinha um mal estar quando não o sentia por muito tempo. Pensava nele no almoço. Dormia com ele embalando meus sonhos escuros. Aos poucos o Cheiro foi se tornando parte do meu ser. Uma extensão da minha alma, sei lá. Era minha obsessão, meu segredo, minha maior preocupação. Meu amor e meu ódio. Fazia esquecer os meus filhos. Da minha ex-mulher. Daquela porrada de conta atrasada.

Só não me fazia esquecer os meninos da rua. De um jeito mórbido que só compreendo agora...o Cheiro também me fazia lembrar deles. O que me leva de volta ao começo do relato. Hoje outro moleque sumiu da rua. Cartolinha sumiu da rua. E ninguém viu. Só eu. E o Cheiro.