domingo, 3 de junho de 2012

Perfume - Parte 2


Na terceira noite já havia reposto meu estoque de pílulas. Perambulei pelo escritório feito um zumbi. Meu chefe me mandou pra casa mais cedo. Era um cara compreensivo. Cheguei em casa às três da tarde. Passei na farmácia no caminho, é claro. Antes de me largar na cama cheio de pílulas na mente, tive a idéia de checar o perfume. Abri o armário devagar. Minha mão relutava. Como se um peso invisível me impedisse.
Abri o armário pela primeira vez desde que ela se foi. Seus vestidos, suas blusas. Tudo exatamente como no dia em que ela bateu a porta na minha cara e foi trabalhar. O seu cheiro. Tudo estava lá. Como se ela tivesse ido passar as férias em Arraial e já voltava. Demorei-me na contemplação do armário. Cada roupa era uma lembrança. Aquela blusa, a da festa de final de ano do escritório. Aquele vestido preto, a dança no casamento do meu irmão. Aqueles pijaminhas verdes, o mesmo que ela usa desde que nos mudamos pra cá. O mesmo com que ela acordava todas a manhas com aquele sorriso doce e...
Abro a gaveta de joias. A um canto mais afastado, o vidrinho de perfume. Presente meu. Ela adorou. Encheu-me de beijos. Deu-me algo também. Um Rolex que costumava usar só pra sair à noite.  O vidrinho ali, parado na palma da minha mão. Abri. Respirei. As lembranças da noite anterior voltaram a assombrar meus pensamentos. Alguém atrás de mim? Chequei por cima do ombro. Por puro extinto. Levantei da cama e olhei em torno do quarto.
Não vou chamar pelo seu nome. Não vou. É loucura. É loucura e eu não estou louco. Olho atrás da cortina mesmo assim. Torno a sentar na cama, enterro a cara nas mãos. Será que um dia isso vai parar? O perfume largado ali do meu lado. Abro-o outra vez. Inspiro com força. Diana.
No vão da cama tem alguma coisa. Vi com o canto do olho. Sei que vi. Levanto de supetão e encosto na parede. Olhos arregalados. O coração batendo com força. Preciso ver. Preciso ver. Não quero. Ou quero? Preciso ver. Abaixo devagar. Vou engatinhando na direção do vão da cama. Tremendo que nem vara verde. Dá pra escutar alguma coisa vindo de lá. Tem ritmo. Parece até. Alguém respirando. Um ritmo nauseabundo, lento, viciado. Como gente dormindo cheio de catarro no nariz. Dá até pra contar as respirações. Deus. Tem alguma coisa. Ali embaixo da cama. Não quero ver. Mas tenho. Tenho que ver. Tenho.
Vou chegando devagar, levanto um pouco o lençol. Abaixando a cabeça devagar pra mergulhar na escuridão. A cabeça vai explorando o vazio do escuro. Se acostumando com o escuro. Bem devagar...
 Acho que me mijei quando o telefone tocou. Empurrei  o lençol com força e pulei pro lado. O telefone da cômoda sempre me sobressaltou. E sempre teve o dom de tocar nas piores horas. Como essa. Não queria atender de começo. Como o maldito não calava a boca,resolvi dar uma chance. Meu coração ainda batia com força quando peguei o gancho. Minha mão ainda tremia,de forma que precisei das duas pra atender a ligação. Era mamãe. Preocupada pra variar. Tentei acalma-la em vão. Minha voz entregava meu medo.
É. Acho que era medo que eu sentia. Minha voz tremia. As mãos também, por falar nisso. Mamãe mostrava sinais de preocupação desde o funeral. Desde então insistia pra que eu fosse passar uns dias com ela na antiga casa no Méier. Nem cogitei. Até agora.
É. Porque agora, eu sentia alguma coisa quando entrava na nossa casa. Falo “nossa” por puro costume. Não quero largar a ideia de que havia alguém morando ali comigo. Alguém que dividia tudo comigo. Na saúde e na doença. Na riqueza e na pobreza. Não posso me permitir abandonar a ideia de que havia ali outro ser humano. Alguém em que se confiar. Alguém em quem se apoiar. Alguém pra se amar. Diana.
Mas tenho medo agora. Essa sensação ruim quando entro na nossa casa. É inevitável olhar pros cantos escuros. Fico pensando se vou conseguir dormir no nosso quarto depois desta noite. Tenho medo agora. Medo. Mas medo de que? Exatamente de que? Será possível que posso me deparar com um cadáver decrépito andando perdido pelo corredor? O rosto de Diana, desfigurado pelo acidente. Os olhos saltados. Aqueles hematomas escuros cobrindo sua pele branca. Um pedaço de carne pendurado aqui e ali? Usando o seu vestido de casamento. A noiva cadáver. Um clássico!
Medo de que? Sério. Sempre fui racional. Nunca acreditei nessas bobagens. Tenho uma tia espírita que inclusive me ligou logo que soube do acidente. Ouvi a velha com suas baboseiras por uns quinze minutos depois deixei ela falando sozinha. Quer dizer. Não dá pra acreditar que exista alguma coisa depois do derradeiro dia da nossa morte. Dá? Nunca pensei realmente a respeito. Sempre correndo de lá pra cá. Entre um emprego e outro, um negócio da China, umas ações da empresa tal, uns contratos...
Mas e a morte?  Ela anda por aí. É tudo que sei. Perdi uma meia dúzia de amigos nos últimos anos. Uma meia dúzia de tias anciães que nunca tive muito contato. E foi só. Nunca realmente parei pra pensar na morte. Nunca cogitei a possibilidade de que ela me pudesse tirar tão cedo alguém tão próximo. A gente faz assim. Anda por aí, vivendo tudo que tem pra viver sem realmente pensar que a Caveira de Capuz Preto pode estar bem atrás de você. Ali no escritório. Na esquina da rua que você atravessa todos os dias.Tomando um café preto na padaria da esquina. Só esperando. A hora certa de te chamar. Sua hora chegou. Vambora!
Foi assim com Diana. Duvido que ela tenha pensado sobre isso tampouco. Vivia com pressa como eu. Trabalho, casa, trabalho, alguma festa, casa.E lá estava ela dirigindo a seus oitenta por hora no Alto da Boa Vista.E aí, como num passe de mágica: Vambora!
 Ela deve ter dito: “Não, mas hoje não posso! Acabei de brigar com meu marido, eu nem cheguei a dizer adeus, me leva amanhã!”. Mas não teve jeito. Era a hora e a Caveira não gosta de esperar não. Foi assim que naquela tarde quente ela levou Diana embora de mim. Pra todo sempre, numa curva no meio da serra. Uma curva cumprida, escorregadia que nunca chegou a terminar.
Nem ouvi o que mamãe dizia ao telefone. O mimimi de sempre. Chamando pra casa do Méier de novo. A velha casa onde fui criado. Com seu quintal cheio de flores, sua varanda com aqueles azulejos de mil novecentos e zero e aquelas cortinas cheias de poeira. Mamãe falando sem parar no meu ouvido o dia inteiro sobre os acontecimentos da Paróquia que ela costumava ir. E sobre o preço do pão. Ela sempre fala do maldito preço do pão. Não sei do que tenho mais medo. Dos fantasmas da minha casa ou ter que ir morar com mamãe. Recusei educadamente e fui tentar dormir.
Deixei a luz do abajur da cômoda aceso. Como um garotinho com medo do escuro. Reforcei minha dose diária de pílulas. Acrescentei uma pequena dose de whisky. Só pra garantir. Deixei a tevê ligada. Bem baixinho. Só pra ter aquela falsa ilusão de alegria no quarto. Estava entrando num ponto de estupor entre o mundo real e o dos sonhos. Foi quando tornei a ouvir a respiração. Bem distante. Meu coração dessa vez parecia ter congelado de medo. A respiração ia e vinha. Devagarzinho. Se a televisão estivesse um pouquinho mais alta seria impossível perceber aquele som vindo debaixo da cama onde eu deitava agora. Meus olhos arregalados no escuro não conseguiam se desprender do teto.
Saltei da cama de forma a ficar o mais longe possível do vão da cama. Como se temesse que mãos de esqueleto pudessem me puxar pelos calcanhares. Sai correndo do quarto acendendo todas as luzes da casa. Peguei o telefone da casa e disquei tremendo. Mamãe demorou pra atender com sua voz sonolenta porém feliz. Estava indo pro Méier agora mesmo. E dali direto para o Pinel, quem sabe?
De repente, mamãe não parecia mais tão assustadora assim. Enquanto saía de casa depois de jogar uma meia dúzia de mudas de roupa numa mochila, tive a certeza de que um vulto passara correndo no quarto escuro no fim do corredor. Saí sem nem apagar as luzes. Fechava a porta da sala e dei uma ultima olhada na nossa casa.
Antes de fechar a porta de vez, ainda pude sentir um leve cheiro do perfume.
                                   
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