segunda-feira, 20 de junho de 2011

a barca

Barca das dez. Uma das ultimas da noite. To morto,pra variar. Trabalho de escravo num escritório de advocacia no centro. O jeito mais rápido de chegar em casa é pegando a barca,do lado do escritório. As vezes consigo pegar a das dez. É o dia que eu chamo de produtivo. Sem muita papelada. Sem muita enrolação. Consigo bater o ponto as nove e quarenta e cinco e correr a tempo de pegar a barca das dez. Com um pouco de sorte,pego o ônibus das dez e quarenta e estou na cama às onze. Um pouco de sorte. É o que mais faz falta ultimamente. Nos últimos o que? Dez anos? Estou preso num emprego que odeio. Rodeado de gente esnobe e idiota que só fala de fofoca e BBB. Não tenho família. Nenhum amigo próximo demais. Só um cachorro gordo me esperando no apartamento com olhos tristes e cansados.

Não que eu não seja feliz assim. Sempre fui assim. Sozinho. Nunca gostei muito de lugares cheios. Gente demais. Gente demais me incomoda. Me deixa inquieto, sei lá. Por isso é até bom pegar a barca das dez. Ela deve agüentar o que? Umas mil pessoas? Mas a essa hora da noite, só uma média de duzentos,trezentos cornos no máximo esperam na estação ansiosos pela barca que vem deslizando pela baía escura. É mais gente do que eu gostaria. Mas bem menos gente do que eu suportaria. Então,fico contente assim. Sempre tomo uma cerveja enquanto espero na estação. É tipo um ritual. Meu ritual. Olho em volta pras pessoas cansadas enquanto espero pela barca. Faz parte do ritual.

Tem sempre aquele casal de executivos que chega a mesma hora que eu. Se eu fosse mais simpático ate os cumprimentaria. Vejo os dois infelizes todos os dias da semana há mais de dois anos. Uma loira falsa com sua saia de executiva e o terninho. Um coroa meio careca sempre com o mesmo terno cinza. Deve ter uma coleção deles no armário. Estão sempre esperando abraçados pela barca. Recostados um no outro depois de um dia de trabalho escravo. Como eu. A diferença é que não tenho onde me encostar. Tudo bem. Não tenho tempo pra esse tipo de coisa, mesmo. Eles não falam muito. Trocam meia dúzia de palavras doces e ficam ali. Abraçados. Esperando pra ir pra casa e dormir juntos.

Tem os três amigos professores. Sei que são professores porque sempre conversam alto,sempre rindo muito. Um deles é de Física. Um de Biologia. Um de Matemática. Todos com menos de trinta anos,com certeza. Sempre conversando alto sobre futebol ou quem pegou a aluna mais gostosa. Tenho um pouco de inveja deles. Provavelmente ganho mais que os três juntos, mas e daí? Não costumo rir assim. Não costumo conversar assim. Ate gostaria,acho. Mas não costumo. Tenho ate alguns amigos no trabalho. Mas é diferente. Eles parecem mais interessados em como roubar o emprego do chefe do que de fato em viver, me entende? Não rio assim quando estou com eles. Não rio assim quando estou com ninguém. Até gostaria,juro. Mas não rio assim. Uma pena.

Tem o velho Cartola. Chamo-o assim porque é idêntico ao mestre do samba. Um coroa nos seus setenta anos. Paletó branco. Camisa meio desabotoada por baixo. Chapéu na mão e um par de óculos escuros. Uma corrente dourada em volta do pescoço e uma bengala pra apoiar o peso dos anos. Sempre chega antes da leva de gente pra barca das dez e pega um lugar pra si em um dos bancos de madeira. Sempre o mesmo banco. Sempre a mesma cara. Sempre sozinho. Como eu. As vezes tenho a impressão que ele me encara por trás dos óculos escuros. Pode ser só uma impressão,é claro. Não da pra ver o que está por trás dos óculos. Mas pode bem ser que não seja impressão nenhuma. E que o velho Cartola esteja de fato olhando. Talvez um lobo solitário reconheça outro. Talvez esteja ali,por trás daqueles óculos pedindo. Não,implorando. Não acabe como eu, garoto. Ainda dá tempo de mudar a sua vida. Pra mim já era, mas ainda há esperança pra você. Você não tem que ser assim tão sozinho. Não tem mesmo,garoto. Ainda dá tempo de dar mais uma chance pro amor e conhecer uma garota legal. E mudar esse circulo de abutres que você chama de colegas. E ate mudar de emprego. Sei lá. Mudar os ares um pouco. Experimentar coisas novas. Dinheiro não é tudo nessa vida,garoto. Ainda dá tempo pra você,estou dizendo.

Tem as amigas secretarias. Pode ser preconceito da minha parte. Quer dizer,nenhuma grande advogada do centro pega a barca das dez sozinha. E o jeito como elas falam... Sei lá. Fofocada baixa demais. Advogadas fofocam de um jeito diferente. Usam um vocabulário diferente. São mais ácidas,acho eu. Parecem secretárias pra mim. Uma delas sempre me encara. Eu fico na minha. É melhor. Não sei se estou pronto pra tentar alguma coisa com alguém. Ainda mais com uma secretaria qualquer. Não que eu mereça coisa muito melhor. Mas. Sei lá. Acho que me daria melhor com uma mulher com mais...classe. Tá me entendendo? Mais sofisticada. Talvez eu seja exigente demais. Quer dizer. É uma bela morena. Sempre cochicha algo com a amiga e da uma risadinha quando eu me aproximo. Será que é hoje que ele vai me convidar pra sair?

Não. Não vai ser hoje também.

Tem também os caras de terno do escritório do lado. Nunca trocamos palavra. Almoçamos no mesmo restaurante há anos,mas nunca trocamos palavra. Não me incomodo com isso. Tem os alunos de algum curso de pintura. Sempre voltam com uma pasta grande cheia de pinceis e carvão. Um deles fez um desenho meu certa vez. Entregou-me com um sorriso. Disse que eu atraia sua atenção por estar ali parado sozinho. Toda noite. Ele chegou em casa na noite anterior e me desenhou. Eu gostei muito. Não era uma caricatura. Era um desenho legitimo de um jovem executivo nos seus trinta anos. Semblante cansado e sombrio. Realçado pela sutileza e a profundidade do carvão absorvido pelo papel. Eu adorei. Não disse pra ele. Não sou muito bom com palavras. Mas consegui esboçar um sorriso e um muito obrigado. Pareceu ser o bastante para o jovem artista. Voltou satisfeito para perto dos outros. Nunca mais trocamos palavras depois disso,tampouco.

Tinham os outros trabalahdores. Sempre cansados como eu. Alguns cabisbaixos. Outros contentes. Alguns sempre falando ao celular. Antecipando sua chegada em casa. Falando com pos filhos. Ou com esposas esperando pro jantar. Eram de todos os tipos. Alguns também de terno e gravata. Alguns caros. Outros pareciam tirados de algum brechó do centro do Rio. Alguns com camisetas com o nome de alguma empresa de computador. Alguns De calças jeans e tênis. Outras com sandálias altas e saias bem curtas. Uns com óculos pesados e jaqueta. Outros com um bocejo estampado e um MP3. Pessoas. Pessoas de todos os tipos,cores,raças,lugares. Pessoas com diferente destinos. Com diferente idéias. Com diferente sonhos. Pessoas de todos os tipos. Pessoas.

E nenhuma dessas pessoas merecia o que estava pra acontecer.

Seja lá o que for.