As sirenes são
meu despertador. Lembro-me da primeira vez em que as escutei. Há mais de três
anos. Eu era um homem diferente então. Um homem normal. Eu era a própria
definição de Normalidade.
Normalidade. Um conceito engraçado.
Contra-intuitivo. Normalidade sugere alguma coisa estática. Parada no tempo e
no espaço. Mas não é. A normalidade pode ser extremamente mutável. Mas tem uma
regra pra continuar sendo chamada Normalidade: tem que mudar devagar.
Devagar o
bastante pra passar despercebida por todo mundo. Sai de um estado primário de Estranheza pra devagarinho tomar uma
nova forma. E um belo dia você acorda e lá está ela. Aquela Estranheza toda de
repente desaparece. Você se acostuma com ela. Você e todo mundo aceitam ela. E
num passe de mágica, a Estranheza se
torna a Normalidade. A Nova Regra. A
nova Ordem.
Assim foi com o
Toque de Recolher. A primeira vez que ele tocou foi estranho. Na centésima vez
foi normal. Assim foi comigo. A primeira vez que matei alguém, foi estranho. Depois,
foi normal. Porque se não for normal... Será o meu fim.
Quinto toque das
sirenes. Só faltam mais dois. Já começo a ficar impaciente. Pelas frestas das
persianas vejo as pessoas correndo pra dentro de suas casas. Acendo meu
cigarro. Noite de lua cheia. As pestes ficam mais fracas nessa época. Pelo
menos é o que dizem. Não tenho muita certeza se acredito. Mas me conforta um
pouco imaginar que posso estar tendo alguma vantagem em relação a elas. Falta pouco agora. Hoje vai ser uma noite
longa. O esquema foi repassado mais de mil vezes. Por cartas e sussurros. São as
únicas formas de comunicação segura hoje em dia. Quase as únicas formas possíveis.
Nenhuma máquina funciona direito desde que elas vieram. Sinto falta do meu tablet.
O sétimo e
último toque das sirenes. É isso. Chegou a hora. Os últimos raios de sol se despedem
no horizonte. Rezo um Pai-nosso. Só por costume. Pelos velhos tempos. Pela
Normalidade.
Pego as armas e
o casaco. Reconto as balas. Bombas caseiras. Checadas. Repasso o plano
mentalmente. Pela última vez. Tomar o velho elevador pro subsolo. De lá seguir
pelos esgotos onde devo encontrar os outros. Devem ser vinte homens. Vinte
filhas da puta que não tem nada mais a perder. Tirando a própria carcaça. Vinte
corações rebeldes que não aceitam as coisas como estão. Vinte inimigos da
Normalidade.
Antes de tomar o
elevador, dou uma última olhada pela janela. Ao longe, vejo mantos brancos
voando na direção da Prefeitura. Vindos de todas as direções. Os berros
agourentos ecoando pelos prédios. É verdade então. Vai ser hoje. Tento resistir
ao impulso extremamente normal de pegar os binóculos para contemplar. Tenho
medo de fraquejar se olhar mais de perto. Olho mesmo assim. Uma nuvem branca
composta de trezentas ou trezentas e cinquenta delas voando no céu que mal
ficou escuro. Nunca vi tantas ao mesmo tempo. Uma delas olha na minha direção.
Com aquela cara podre. Os olhos mais velhos que o Tempo. Como se adivinhasse o
que eu vou fazer.
Largo os
binóculos e vomito com força no chão. Maldita Normalidade. Sempre te perturba
quando você menos precisa dela. Puxo a fotografia do bolso. Lá está. Minha pequenina
sorrindo. Eterna e intocável. A salvo. Pelo menos no meu bolso. Limpo o resto
de vômito da boca. Forças revigoradas. Faça por ela. Lute por ela. Morra por
ela. Porra. Mate por ela. Mate quantas puder por ela. As portas do elevador se
fecham devagar atrás de mim. Fecho os olhos e acaricio as armas. A imagem de
minha pequena ainda impressa em minhas retinas. Dando-me forças. Dando-me
combustível pra fazer o que for preciso. Quer dizer, é o que se espera de um
pai normal, não é?
Talvez tenha me
precipitado. A Normalidade pode não ser tão ruim assim afinal.
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