domingo, 11 de dezembro de 2011

A Corrida

Corre a menina o chão azul. Azul claro, não mais. Pontilhado de estrelas deslizam devagar. E rápido agora. Passam as estrelas sem fim a escuridão do chão. Sem fim. Todo infinito. A menina não perde o equilibrio. Não olha pra baixo. É mais fácil. Natural. Pronto. Factual. Corre sem pressa. Como querendo chegar ao destino que desconhece. Corre pelo ato de correr. Corre por ser menina. Que é.

Não sabe bem o que sente. Sabe alguma menina? Uma imensa energia acumulada. Que a impele ao exercício. E nada mais. Nem bem uma alegria. Tristeza tampouco. Então daonde virão as lágrimas que salgam seu rosto? Nem ela sabe. Tampouco importa. Só importa a corrida. Só importa o adiante. E nada além.

Caminha sobre areia agora. A brisa salgada do mar a salpicar suas faces coradas pelo sol. Ninguém à vista na longa enseada. Nem um ser sequer. Gaivota, siri, peixe, ser algum, só menina. Corre ainda. Mas perde um pouco do pique. É uma bela praia afinal. Poderia se demorar ali por mais alguns...séculos? Tão linda paisagem. Recorta-a somente o som de ondas suaves quebrantadas sobre a areia branca e macia.

Sorri a menina. Sorriso triste doce inocente. Como que escondendo algo. De quem, tu me perguntas. Se não há ninguém pra esconder. Não sei, te respondo. Talvez esconda a menina algo de sua própria alma, de seu próprio sorriso cansado. Talvez esconda a menina algo de si mesma. Talvez assim seja talvez.

Pára a menina por um instante. O fôlego explodindo as bochechas rosadas. Os cabelos dourados dançando o som da brisa. O vestidinho branco em seu próprio ritmo, sua própria dança. Os olhos azuis se perdem na imensidão das águas. O infinito oceano que a lugar algum conduz. Pensa a menina com seus olhos doces que deve continuar. Mas pra quê. E pra onde.

Sente medo. Impelida pela necessidade de seguir jornada despropositada, volta a menina à corrida. Os pezinhos salpicados pelas águas marcando a areia pegadas profundas e pequenas. Pegadas perdidas. O vento há de apagar. O vento sempre apaga.

E assim como surgiu, a praia se vai. Sem nem dizer adeus. A corrida segue. O fôlego da infância não sossega jamais. Uma estrada negra se apresenta à pequena agora. Ela pára por um minuto. Em sua cabecinha imagina se o ardor do asfalto não lhe queimará os pés. É uma longa estrada. Sabe-se lá quanto terá de andar até chegar ao fim da velha estrada. A urgência da corrida torna. Não há outra solução. Correr pelo asfalto gasto.

Os primeiros metros não sentiram. A afobação de chegar cegou-lhe os sentidos de dor. Mas a dor já vem. Ela sabe. Tão certo quanto o dia que chegará ao fim. A dor já vem. O sol imenso amarelo castigava a velha estrada fazendo o asfalto tinir. Suar até. Ao longe, a paisagem dançava sob escaldante castigo. A menina já não sorri. Nem que quisesse. Nem que pudesse. Os pezinhos ardidos contra o atrito da corrida. Torrando pretinhos, pretinhos. Como carvão. Lágrimas salpicam sua face. Com elas, o suor. Ainda sente o sal. Não mais vindo das ondas. Agora de si. Sal de si. Mar de si. Imensidão de si. E somente. Não há acostamento pra escapar. Nem um mato. Sombra. Coisa alguma. Somente ela e o asfalto negro. E a certeza de que deve continuar correndo. Ou queimará. A dor dos pezinhos chega-lhe à cabeça. À alma. Turva-lhe a vista, os sentidos, turva-lhe tudo. Olhos rasos molhados fechados agora. Somente o som da respiração e do chorinho miúdo que vai crescendo, crescendo dentro de si.

Vai cair. Sabe disso. Tenta resistir o quanto pode. Só um pouco mais. Um metro mais. Um milímetro. Caiu. Espera o ardor do asfalto consumir-lhe os ossos. A pele se abrir e derreter colada a negra.

Mas não. Os pezinhos suspensos no ar. Alguém aguenta o seu pesinho. Carrega seu fardo. Abraço apertado. Enxuga-lhe lágrimas, tristeza, medo, tudo que machuca e apavora. Abre os olhos a pequena. Sorriso bonito, olhos claros, pele castigada pelo sol do sertão. Chapéu de palha, moço simples. Simples e belo. Simples e belo e salvador. Sim. Porque senão por ele, a queda ceifaria sua vida. Caminha depressa. Menina no colo embalada. Ele põe-se a cantar. Canção conhecida, já antes ouvida mas em sua voz a canção é maior. A melodia assim de seus lábios faz todo o sentido. Todos os sentidos. Que haveriam de ser. A menina recosta. Abraça apertado. Embalada pra sempre. Olhos Claros espreita seu esmorecer. O sol segue alto claro imponente. Castiga a caminhada. Devora a estrada. Devora tudo. Tudo não. Não devora Olhos Claros. Que segue valente, passo por passo. A estrada segue. Tem de seguir.

A menina acorda. Sozinha outra vez. Abre um olhinho. O outro depois. Espreguiça, olha em volta. Sozinha outra vez. Atrás de si velha estrada. Terminou afinal. Mas onde andará os seus Olhos Claros? Não seguirá com ela até o fim? Sabe que não. Queria com ele caminhar junto pra quando cansar, ser levada no embalo do colo de novo. Sabe que não. Sua vez já passou. Sua importância não. Até ali carregou, o fardo pequeno como fosse seu. Talvez fosse. Não importaria também de carregar o fardo dele quando preciso. E talvez carregue. Na caminhada dele e só dele.

Espreguiça, levanta. Trata correr. Muito chão ainda falta pra chegar ao destino. Destino nem sabe. Só sabe que tem. Só sabe que vai. E vai mesmo. O sol foi embora. Estrada não há. Só chão enlameado. Os pezinhos sujos cada vez mais sujos. Os olhinhos rodando pra ver o que há. Entender o que há. O cheiro ruim. O céu nublado, feio, agourento. Cheio de promessas ruins. Trovoadas aqui, acolá. Promessas ruins. É o que há. Cria correr sozinha. Já não estava. Ao longe os Botinas correndo de um lado pro outro. Sem parar. Correndo e gritando. É tudo o que fazem. Só fazem correr e gritar. Ela tenta correr em segredo. Não podem ver. Não podem. Ela sabe que virem está tudo acabado. A Corrida se finda. Eles querem que a Corrida finde logo. São ruins. Como o céu. Cheio de promessas ruins. Botinas sujos. Com suas palavras duras e o cheiro de gás. Colocam estrelas em esqueletos. Esqueletos que andam que caem que choram. Montes de ossos. Podem ossos chorar? Não sabe. É apenas menina. Não poderia saber. Se esgueira entre os montes. Pilhas, na verdade. São pilhas de esqueletos. Sepultados jamais. Largados assim, ao relento. Esquecidos no chão. Largados ao vento, ao escuro, a chuva fina que começa. Pilhas de esqueletos. Choram ainda. Não me esqueçam. Por favor não me esqueçam.

Chora a menina com vontade agora. Por entre as pilhas, grandes pilhas de ossos encontra alguém. Não lembra bem quem. Mas lembra que conhece. Conhece bem. Olhos azuis como os seus. Um esqueleto somente. Diferente contudo. Lembra quem é. Chora e olha a menina. E a menina olha de volta. Olhos nos olhos. Choro no choro. Mamãe, eu te amo. Não vou te deixar. Mas você tem de continuar. Não posso, não posso. Você tem. Você vai. Eu sempre vou te amar. Nunca se esqueça. Nunca se esqueça de mim. Agora se vá que a estrada segue e os Botinas já vêm. E não podem levar. Não podem te achar. Mas agora se vá. Não olhes pra trás. Pra trás jamais. Tschüss! Ich liebe dich! Agora se vá. Que os Botinas já vem.

Corre a menina o chão de lama. A manga marejada de lágrimas. As perninhas bambas. Podem seu pesinho carregar? Podem continuar a corrida? Devem. É tudo que sabe a pequena. E segue corrida. Olhando por entre as pilhas, os Botinas sujos com suas cruzes e seu gás. Botinas sujos. Por entre as pilhas corre a menina. E um deles a viu. Viu e gritou. Chamou os outros. O choro aperta. Não pode parar. Coração galopando. Deseja a mãe, Olhos Claros, alguém. Mas alguém não vem. Não dessa vez. Esconde embaixo de um carrão que ali perto estava. Carrão velho sujo de terra, preto. Os Botinas pertinho. Dá até pra sentir o cheiro nojento do gás. Dá até pra ver os olhos deles. Escuros que nem noite. Espreme o corpinho contra uma cerca ao lado. Escapa quietinha, quietinha. Logo agora que um Botina resolve olhar embaixo do carro preto. Mas não tem mais menina. Já corre de novo. Sem olhar pra trás. Assim ensinou mamãe. E corre.

Primeiro sem direção. Depois toma um ponto. E segue pra lá. O chão já vai limpo. Ordem afinal. No meio do caos. Uma rua bem velha. Já nem deve existir. Se é que já existiu algum dia. As casinhas coladas. Bem perto uma da outra. Como quem se apóia no amigo do lado. Pra não cair no fim de noite. Corre a menina. As árvores, os postes de luz, os carros antigos antigos, desses que nem se vê mais. Pessoas sorrindo, o dia vai lindo. Tudo está onde devia estar. Menos ela. Ela precisa continuar. Passinhos apressados já meio demorados só pra aproveitar um pouco mais a visão. Distribui tchauzinhos e sorrisos pros cavaleiros e damas da rua. Gente bonita. Vestem roupas de outrora. Vivem tempos que já passaram. Felizes como ela já fora um dia. Dias primeiros. Passando a rua. Sua velha bicicleta. Já meio enferrujada. Num canto largada. Assim meio esquecida. Esquecida vai ela também.

Chega à casa. Velha casa. Linda casa. Tantas lembranças que agora já vem. Ali que nasceu. Assim disse mamãe. Numa bela manhã de outono. Vieram presentes. Beijos e olhos. Olhos pra ver o mais novo ser que a Alemanha há de ter nesta linda manhã.

Pára a menina. Coração apertado. Sabe em segredo que a Corrida acabou. Olha pro lado. Olha pro outro e assim devagar caminha menina. Pra porta meio aberta. De certo esquecida. Da casa querida. Aurora da vida. Esquecer-te jamais. Pára a menina. Mais uma vez. Fecha os olhinhos. Pensa em tudo que a Corrida deixou pra trás. Mas leva com ela. Toda Corrida. Todo passo. Toda vida. Que viveu. Tudo que viu. Tudo que amou. Tudo mais.

Entra na casa. Dentro só luz. Olhinho apertado. Sorriso que brota. Lágrimas nunca mais.

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_ Será que ela sofreu?

_ Acho que não. Olha como está sorrindo. Morreu dormindo... É a figura mais maravilhosa que já vi neste hospital. Morreu em paz, tenho certeza.

Desligam-se os aparelhos. Ligações são feitas. É hora de desocupar o leito. E se preocupar com a papelada. Na cama branca, uma senhorinha de lindos olhos azuis ainda sorri.

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sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Loucura - Parte Final

Só sei que num instante o garfo tava ali. Apontado pra minha direção e do Zé. No outro instante, o garfo tava lá. Encravado naquele lindo olho esverdeado dela. O direito. A louca era canhota.
Ela golpeava o próprio olho. Furava com o garfo. Com toda força. Jatinhos de sangue voavam pros lados. Um deles espirrou na minha mão. Ela arrancava o garfo. E depois tornava a investir outro golpe. Sem dó nenhuma. No mesmo olho. Quer dizer. Não sei se ainda tinha alguma coisa que pudesse ser chamada de olho ali. Mas ela arrancava o garfo e depois tornava a encravar com força. Com raiva. E depois arrancava de novo. E depois tornava a enfiar o garfo. Sem parar.
Eu não tinha reação. Não dava pra ter reação. Nem quando o jatinho vermelho escuro pousou na minha mão. Nem quando os pedaços de...sei lá. Gosma? Geléia? Sem cor nenhuma, parecendo vidro derretido respingaram um pouco na minha boca aberta. Não tinha reação, cara. Quer dizer, o que que você faz numa situação igual essa?
O incrível. Não, o impressionante é que nem depois disso tudo. Ninguém olhou. Ninguém parecia estar consciente do que tava acontecendo ali. Ou não se importava, sei lá. Mas aquilo tava acontecendo. Não tava? O Zé tava ali do lado. Quando eu tive um pouco de força pra olhar pro lado eu vi o homem branco como um fantasma olhando de volta pra mim. Um dos jatos de sangue tinha sido disparado na cara dele. Um respingo escorria devagar, perto da têmpora esquerda. Então, ele também tava vendo aquilo, certo? Não era só eu.
Ainda não sabia o que fazer. Não tinha idéia. Mas sabia o que eu não ia fazer. Não ia continuar ali, parado vendo aquela merda. A mulher continuava investindo garfadas dentro do buraco onde antes tinha um lindo olho verde. Pelo amor de Deus. Ela não ia parar mais? E os gritos? Deus. Os gritos. Não paravam também, não. O marido. O dinheiro. Se eu não tivesse dormido com aquele filha da puta. Ela não parecia nem se dar conta do que estava fazendo. Completamente surtada. E o garfo ia entortando. Entornando. Como se tivesse batendo contra uma superfície dura agora. E talvez tivesse. Talvez já tivesse chegado ao fundo. Isso explica aquele barulho agourento. Quando você arranha com a unha um parede de concreto.
Levantei de súbito. Puxei o Zé junto, fazendo o pobre diabo quase desabar da cadeira. Ele ia me agradecer depois. Ia dar o fora dali. Agora. Sair daquele lugar dos infernos e ligar pra alguém. Pra policia, os bombeiros, a defesa civil, pro demônio. Alguém que tomasse uma providência com aquela maluca. E não ia ser eu não.
Simbora Zé. Vamo saí daqui. Vamo não. Bora homem. Mas vamo não. Vamo é matar. Matar todo mundo.
Aquele homem baixo, tímido, meu companheiro de bar e puteiro. Não era ele. O olhar não era dele. A enorme faca que ele apanhara da mesa ao lado não era dele. O sorriso que brotou no canto da boca. Não era dele. O jeito como foi andando pro outro lado do restaurante. Na pontinha do pé. Parecendo um desenho animado ridículo, rindo e olhando pros lados. Pra ver se não tinha ninguém olhando. Ia assim, devagarzinho, na ponta do pé. Na direção de um garçom que anotava os pedidos da mesa mais próxima. Mas que diabos ia fazer? Zé. Que diabos ta fazendo ai? Gritei. Tentando competir com a loira maluca a minha direita. Zé. Zé, pára com isso agora Zé. Mais perto. Cada vez mais perto agora. Indo devagarzinho. Levanta a faca com as duas mãos. E o imbecil do garçom ali, anotando o pedido da mesa do casal. Um sorriso falso na cara. É o melhor vinho da casa, senhor. Pode estar certo disso. Pode estar certo que é o melhor. Zé. Zé, pára com essa merda. Meu marido. Eu odeio aquele filha da puta que não me dá a porra do meu sapato que eu mereço. Ele não pensa em mim. Eu odeio a minha vida, porra! Zé, pára com essa merda. Eu deveria ter ido na direção dele. Tentado arrancar a faca antes dele fazer aquela loucura. Mas não conseguia sair daonde eu tava. Eu tava com medo. Como quando fui assaltado por dois vagabundos ano passado. Como quando minha ex- mulher me pegou na cama com a minha enteada e mirou aquela arma na minha cabeça. Como quando papai me pegou tirando dez cruzados da carteira da vovó quando era garoto. Deus. Eu estava morto de medo. Zé. Pára Zé. Cuidado, cuidado seu imbecil!
Ele não viu o Zé. Não viu o Zé levantando a faca. Não viu os olhos arregalados. O sorriso insano. A boca abrindo, abrindo. Não viu nem a lâmina entrando no próprio crânio. Não viu nada. Um minuto ali em pé. Agachado anotando os pedidos. O melhor vinho da casa. No outro momento, de joelhos diante do casal na mesa. A cabeça enterrada no prato de risoto. A lâmina encravada fundo no crânio, daonde vazava sangue e miolos pela mesa.
O Zé se limitou a olhar pra mim e dar de ombros. O sorriso imbecil na cara. Nunca vi o filha da mãe sorrir daquele jeito. E sem aviso começa a saltitar pelo restaurante. Como um daqueles dançarinos de balé gays que a gente vê na tevê e muda de canal depressa. A loira continuava gritando ao meu lado. Já não dava a mínima pra ela.
E o casal. Que o garçom estivera atendendo. O melhor vinho da casa, senhor. Se limitava a olhar pro crânio aberto do homem. E continuavam a conversar animadamente. Ela pegou nas mãos dele. Com os berros da loira e a cantoria estridente que o Zé começou a bradar, não dava pra ouvir o que dizia. Mas deu pra ler os lábios. Eu sou bom em ler os lábios. Eu te amo. Nós vamos ficar juntos pra sempre. Um brinde. Removeu a faca do crânio tombado em cima de sua mesa. E começou a abri-lo, como um coco. A mulher sorria e batia palminhas, excitada. Deus. Deus do céu. Não.
O Zé continuava sua dança. Imitava borboletas, pássaros, parava de mesa em mesa. Despenteava o cabelo de um. Derrubava o prato de outro. As pessoas se limitavam a olhar pra ele com cara feia e depois afugentá-lo com uma aceno de mão. Como se fosse uma mosca chata de bar. As pessoas não notavam. A mulher sem olho. O homem morto. Morto. Caído em cima da mesa do casal. Morto ali. Por um louco que agora dançava e saltitava pelas mesas como um beija-flor. Eu odeio a minha vida. Eu odeio,odeio,odeio. A mulher começava a golpear o outro olho agora. Novos jatos de sangue na minha camisa. A música distante do restaurante dava um coro demoníaco a toda aquela cena. Uma dessas músicas clássicas de algum compositor famoso. Desses que você nunca sabe o nome, mas que todo mundo acha o máximo. Chopin, Bethoveen, sei lá quem. Ando pela cena como num sonho. Perdido. O celular parado na mão. Não sei mais discar um celular. Não me lembro. Ando passos de bêbado. Tentando me livrar da mulher que agora vaga cega de um lado pro outro, esbarrando nas mesas, nos garçons que continuavam a servir as mesas como se nada tivesse ocorrido.
O homem já tinha aberto o crânio do garçom morto completamente. Expunha o conteúdo da cabeça pra mulher que ainda ria e arregalava os olhos, dando gritinhos animados. Pegaram duas taças de vinho. Encheram cada um com um pouco daquele conteúdo cinzento, disforme. Entrelaçaram os braços um do outro e...
Não dava pra olhar aquilo. Deus. Que diabo. Que diabo de pesadelo era esse em que eu estava metido. Não conseguia pensar. Só olhava pros lados. Da loira cega. Pro Zé passarinho. Pro casal. A mulher agora com um bigode vermelho pegajoso, tentava limpar a boca do marido com um lenço. Sempre rindo. Dentes vermelhos.
As duas feiras estavam de pé agora. Contavam alto. Um. Dois. Três. Levantaram as batinas e se puseram a mijar na mesa. Rindo alto uma da cara da outra. Por baixo das batinas, calcinhas enormes. Cor de pele. Camadas de gordura branca emolduravam umbigos caídos e peludos. Talvez a cena mais perturbadora do almoço.
Foi quando me ocorreu pela primeira vez. Estão todos doidos. Estão todos ficando doidos, juntos, de uma vez, meu Deus, o que é isso, o que é isso? Nesse ponto, meu camarada Zé parou pra beijar a barriga de uma das freiras que ria ainda mais escandalosa agora. Estão todos doidos. Todos.
Nas outras mesas, cenas igualmente bizarras. Algumas cômicas. Ridículas. Ou assim seriam se não fosse tudo tão mórbido. Um grupo de homens se levantara e batia palmas em ritmo desordenado. Cantavam ou tentavam cantar o hino de algum time de futebol. Ou assim parecia. Mas não fazia sentido. Pareciam torcer pra todos. E pra nenhum. De repente, começaram a discutir. Meu time é melhor. Meu time. Seu merda. Seu time de merda. A amizade fora esquecida. Os olhares amistosos se voltaram uns contra os outros. Vi quando um deles pegou uma panela quente de feijão e despejou no amigo ao lado. O homem uivava de dor. O vapor quente escorrendo pelo corpo. Um deles pegou uma garrafa e quebrou no pescoço do outro. De repente, eram apenas uma massa disforme de pernas cabeludas, roupas rasgadas e sangue. Muito, muito sangue.
Os garçons, impacientes contornavam a briga pra poder atender as mesas ao lado. Levavam macarrão ainda dentro da embalagem. Um grande pedaço de filé cru coberto por uma calda de chocolate que o chef vinha derramando enquanto o garçom equilibrava tudo na bandeja. Falta o ingrediente final. E escarrava uma cuspida verde por sobre a carne.
Deus. Todos eles. Todos loucos. Uma senhora com pinta de milionária ria histérica das duas amigas idosas que se beijavam, caindo por sobre a mesa agarradas uma a outra. Um homem agora corria de quatro pelo restaurante, derrubando cadeiras, pessoas e qualquer coisa, tentando abocanhar o Zé que agora era um passarinho que passava cantando por cima das mesas. Um pandemônio. Todos loucos meu Deus. Exceto eu. O que era aquilo? O que podia explicar aquilo?
Mas havia alguém quieto no meio daquele quadro pitoresco. Pitoresco. Gostei dessa palavra. Não sei bem o que quer dizer, mas achei que combina bem com o que se via. Na mesa mais isolada, um canto escuro, reservado. Ele ainda estava lá. Bebendo uma xícara de café, calmo como Satanás admirando o inferno. Sua casa. Num primeiro momento imaginei que estivesse louco também. Cego diante daquelas loucuras, igual os outros no início. Era uma questão de tempo até que começasse a dançar em cima da mesa ou esfaquear o primeiro garçom que passasse. Mas não parecia ser esse o caso. Ele via tudo. Acompanhava com os olhos cada dançarino (agora eram muitos), cada golpe, cada novo jorro de sangue que aflorava naquele restaurante.
E se divertia.
Os olhos escuros passeavam pela cena, um meio sorrisinho na boca. Mas não era como o sorriso dos loucos. Era um sorriso contido. Medido. Sincero. São. Quer dizer. São não podia ser. Quem é que em sã consciência sorri vendo uma tragédia dessas? Não era são. Era um tipo diferente de loucura. Uma maluquice assim mais fria. Calculada. Quer dizer, quando você vê um homem esfaquear outro pelas costas com uma faca e rir depois você até sente uma certa pena do assassino, sabe? É só um doido varrido. Ele nem sabe o que está fazendo. Mas aquele cara. O jeito como ele sorria. O jeito como olhava. Admirava a cena do restaurante. Aquilo ali era um outro tipo de loucura. Bem diferente do que se via ali. O tipo de loucura que você não tem pena. O tipo de loucura que é má.
Ele bebericava a xícara com calma. Olhava pra um grupo. Depois pra outro. Daí tive essa idéia maluca. De que era ele quem estava fazendo aquilo tudo. Sei lá. De alguma forma. A coisa toda tava emanando dele. Como telepatia. Ou sei lá como chamam essas coisas. Ele bem podia ser o tipo que faz essas coisas acontecerem. O terno de velho. O rosto pálido. A careca. Nenhum pêlo a vista naquela cara. Só um tufo que parecia sair de dentro das orelhas brancas. Sozinho. Desde que cheguei ali. Talvez esperando. O momento certo. Pra começar a fazer as coisas acontecerem ali. Mas por que não me atingia? Porque eu era o único naquela cena que não tinha surtado de vez? Quer dizer, não que estivesse muito longe disso. Era uma questão de tempo. Dava pra sentir. Não dá pra ficar normal numa situação dessas. Não dá pra sair normal numa situação dessas. Dá?
Quando ele se virou pra mim, meu coração deu um salto. Não sei exatamente por que. Olhei de volta. Olhos arregalados. Respiração acelerada. O celular inútil na mão. Ele olha pra mim. Eu olho de volta. Ele faz cara de quem não entende. Que foi? Seu filha da puta. Que foi? Que foi, hein? Ele ameaça levantar. Eu sei que não vai. Ele só quer ficar um pouco mais perto. De mim? Por quê? Olha com uma cara curiosa. Um meio sorriso na boca, escorrendo pros lados. Como que não querendo dar o braço a torcer. Como quem não entende bem porque as coisas não estão acontecendo do jeito que ele imaginou. Que diabos ele tá fazendo? Quem é esse cara? O que é esse cara?
A loira esbarra em mim. Gritando ainda qualquer coisa sobre sapatos e descontos. Se ela não calar a boca agora eu juro que esfaqueio ela. E olha que eu não estou louco. Empurro ela pro lado. O careca bizarro ainda me encarando com aqueles olhos estranhos. Quando eu empurrei a loira peguei alguma coisa da mão dela sem querer. Um pedaço de papel. Espera. É o bilhete. Aquele que eu mesmo escrevi. Parece que se passaram dias desde que eu tava ali sentado com o Zé. Escrevendo aquela merda. Quando as pessoas ainda estavam normais. Quer dizer, normais elas nunca foram, não é verdade? Quem é normal nesse mundo insano? Mas pelo menos elas não tinham começado a dançar e se esquartejar dentro de um restaurante. O bilhete ali. Nem me lembro o que tinha escrito. Tá bem manchado de sangue, mas ainda dá pra ver o meu garrancho. Uma única frase.
Oi linda, que belo dia pra morrer.
Deus. Quando eu escrevi isso? Quer dizer, eu não me lembro. Não me lembro de ter escrito isso. Mas a letra é minha. O bilhete. Eu escrevi isso. Mas como? Morrer? Que diabos eu escrevi? O careca. É tudo culpa do maldito. Canceroso de merda. Volta aqui. Praonde você pensa que vai? Filha da puta. Volta aqui. Ele tá levantando. Colocando um chapéu. Apanhando a pasta. Deixou uma nota em cima da mesa. Ele tá indo embora. Não vai não. Não vai mesmo. Volta aqui. Ele olha. Sem muito interesse. Dá um meio sorrisinho. Acena e vai indo na direção da porta. Não senhor. Volta aqui. Volta aqui, porra. Me larga Zé. Me larga Zé, agora! Porra Zé. Isso tá machucando. Essa porra tá machucando, Zé. Essa porra tá cortando, Zé. PÁRA COM ESSA PORRA, AGORA!

Loucura

Não me lembro se foi idéia minha ou dele. Talvez dos dois. O fato é que enjoamos de comer o mesmo feijão com arroz batata frita filé de frango que todo dia engolíamos no bar restaurante da Rua do Ouvidor na nossa hora do almoço. Decidimos tentar o restaurante mais pro final da rua, ali na altura do escritório de advocacia. Parecia meio caro, mas tudo bem. A gente ganha o bastante pra se dar a esses pequenos luxos de vez em nunca. O Zé falou que já tinha levado uma das vadias dele pra jantar ali. Disse que tinham um espaguete com um tempero maravilhoso. Por mim, tudo bem.

Entrei no lugar e me vi rodeado de colarinhos brancos e celulares. Um garçom gente boa nos conduziu até uma mesa mais pro canto esquerdo. Sentamos lá e passamos os olhos pelo menu, despretensiosamente. O Zé veio com um papo de trabalho que eu não tava muito a fim de ouvir. Cortei logo de cara e puxei assunto sobre o jogo do mengão da quarta-feira. Não tava com muita cabeça pra trabalho não. A gente sempre almoça junto. O Zé e eu. É o único cara que eu tenho paciência o suficiente pra trocar uma idéia nos intervalos da papelada do escritório. Trabalha duro. Que nem eu. E tem consciência de que não vai progredir muito mais na empresa. Que nem eu. Mas tudo bem. Só tenho duas pensões e um aluguel relativamente barato do meu apartamento em SantaTereza pra pagar no começo do mês. Dá pra viver tranquilamente.

Olho pros lados, tranquilo. Sabe como é. Pra dar uma olhada na gente rica da zona sul que povoava o restaurante. Todos bem arrumados. Um bando de gente almoçando, jogando conversa fora, tocando suas vidas. Numa mesa, meia dúzia de amigos de escritório tomavam sua cerveja antes da refeição. Na outra, duas feiras tomavam uma xícara de café, conversando baixo. Tenho um pouco de medo de freiras. Não sei bem o motivo. Como se elas tivessem o dom de ler teus pensamentos, sei lá. Nas outras mesas, nada que chamasse muito a atenção. Um casal jovem sem graça nenhuma. Um grupo de coroas ricaças da zona sul. E mais ao longe uma figura mais distinta. Cara esquisito. Uma cara de paisagem, enquanto bebericava sua xícara de café. Pálido como a morte. Careca. Olheiras escuras repousando sob as pálpebras. Talvez tivesse câncer. É. Devia ser isso. Era câncer, coitado. Mamãe morreu disso. Já era idosa, mas a velha sofreu. Esse cara devia ter uns trinta, quarenta anos. Minha idade. Pobre diabo.

Minha atenção foi desviada dele repentinamente. Não entendi como não tinha percebido antes. Não sou mais o velho tarado que costumava ser. Cabelão loiro jogado pra trás. Um par de olhos claros. Dessa distância pareciam verdes. Roupinha de gente de escritório, batom vermelho, falando ao celular. Meu tipo. O garçom gente boa trouxe uma cerveja. Eu rabisquei qualquer coisa num pedaço de papel e pedi pra ele entregar o bilhete pra loira. Velhos hábitos a gente nunca perde. Não tinha muitas esperanças. Quer dizer; sou um cara atraente, eu acho. Me visto bem. Tenho cabelo. Tenho dinheiro. E tenho uma boa dose de charme. Mas sei lá. Aquele é o tipo de mulher que não se deixa levar por um bilhetinho no almoço e um sorriso de um babaca de escritório de meia idade do outro lado do restaurante.

Voltei minha atenção pro meu camarada, o Zé. Deixa ser. Se tiver que rolar, vai rolar. Papo vai, papo vem e lá vem o Zé falar da ex-mulher de novo. Puta que pariu. Cara chato com essa história outra vez. Parece que ele simplesmente não consegue superar. A tal macarronada tava demorando. Até demais. Não sei se o bilhete chegou ao seu destino ainda. De vez em quando dava uma olhadinha pro lado da loira pra ver se pego algum sinal de interesse. O Zé riu da minha cara e me mandou tomar jeito. Acho que não dá mais tempo pra mim. Depois de três casamentos arruinados por rabos de saia alheios, não tenho mais esperança de sossegar com uma mulher só na vida não.

Estávamos num papo animado sobre quem era a mais gostosa do escritório quando de relance, vi a loira encarando. Já disse. Não tinha muitas expectativas, então tive que virar de novo pra tentar capturar mais algum sinal de interesse. E aí, surpresa. Do nada a loira levantou e veio em minha direção. Sabe quando você vira, olha, não acredita e vira pra olhar de novo? No susto. Não era possível. Ela devia tar indo em direção ao banheiro e se perdeu no caminho. Ou. Pior. Ela tava vindo tirar satisfação. Era isso. Vinha andando decidida. Passo firme. Sabia bem praonde ia. Na direção da nossa mesa. Minha e do Zé. Era isso. Ela ia chegar. Falar umas poucas e boas, virar as costas e voltar pra mesa dela. Com toda classe. Talvez o marido fosse policial. Ela era bem o tipo de mulher de policial. Já me meti com esse tipo outra vezes. Péssima experiência, cara. Papo sério.

O pior era a cara dela. Não dava pra adivinhar que diabo ela vinha matutando ali naquela cabeça loira pra me falar. Não dava. Mesmo. E eu costumo ser bom em interpretar mulher, sabe? Eu geralmente sei o que elas vão responder depois de ouvir uma gracinha da minha boca. Já saio preparado quando sei que o tapa na cara vai ser inevitável. Ou já vou chegando junto quando a safada diz que sim com o sorriso, sem nem abrir a boca pra falar.Mas dessa vez...sei lá. Simplesmente não dava pra saber. Ela vinha com aquele jeito. Andando com a bunda, fazendo um garçom ou dois se voltarem pra olhar. Os olhos não diziam coisa nenhuma. Vai se foder? Eu quero te dar?

Não. Era impossível dizer. Simples assim.

Conforme se aproximava, deu pra ver que ela carregava alguma coisa na mão. O bilhetinho sujo que eu tinha acabado de escrever. Já nem lembrava o que tinha escrito. Meio que saiu no automático. Sabe? Quando você faz uma coisa mais de mil vezes e ela vira automática. Você faz a parada e nem lembra de ter feito no momento seguinte. Simples assim. Eu sou canalha assim.

A coisa é que o bilhete tava lá na mão dela. E agora, mais do que nunca eu tinha certeza absoluta que ia ouvir um belo fora. Em grande estilo dessa vez. Ela vinha andando em passos largos. Nem muito rápido. Nem devagar. Só passos largos. Do tipo que você sabe que vão chegar até você em um instante. Quanto tempo? Não da pra saber. Mas você sabe que é logo. Dá aquela ansiedade insana. Pra que a demora meu Deus? Acaba logo com essa porra. Dá o teu fora, joga um copo d’água na minha cara e pronto. Fim de história. Termino meu almoço com meu companheiro, como se nada tivesse acontecido, volto pro escritório e toma uma cerveja no final do dia me vangloriando da atenção que consegui roubar de você pros meus camaradas bêbados sorridentes.

Ela vinha andando e as formas das coxas dela iam ficando mais e mais evidentes; mais e mais maravilhosas. A cada passo. Que mulher, meu Deus. O olhar fixo em mim. Era desconcertante. Em situações normais eu sustentaria aquele olhar. Mas não deu dessa vez. Não conseguia explicar o motivo. Ela parou há meio metro da nossa mesa.

O Zé olhava sem graça pro outro lado. Sempre foi um cara tímido. Acho que é por isso que gosto dele, sabe? É o oposto de mim. Gosto de gente assim. Bem diferente de mim. O que me faz pensar que talvez eu não goste é de gente igual a mim. Faz você pensar, né.

Ela parou ali e abriu a boca devagar como se tivesse medindo o que ia falar. O tom exato. A dose exata. As palavras exatas. A direção exata. Ela não precisava ser adivinha pra saber que tinha sido eu quem escrevera o bilhete. Quer dizer, olha só a minha cara de safado. Ela me denuncia, aonde quer que eu vou. Desde...sei lá. Sempre?

A coisa é: ela pára. Abre a boca devagar. E de repente, sem aviso, completamente do nada, escancara a boca num berro. Um turbilhão de palavras sem conexão nenhuma. O berro mais louco que eu já tinha ouvido na vida. E olha que fui casado três vezes, hein. Ela berrava. No começo não dava pra entender direito o que era. Mas depois que os ouvidos começaram a se acostumar com o timbre daquela voz fina comecei a pegar alguma coisa. O Zé olhava com os olhos arregalados pra mim, sem reação. Não que eu tivesse prestando muita atenção no Zé. Só dei uma olhadela rápida. Só pra ter certeza de que ele também estava escutando aquela maluca começar a gritar do nada.

Quer dizer. Qual é, né? Eu não lembro de ter escrito nenhuma pornografia. Não tinha necessidade nenhuma daquele papelão todo. Fala sério. Em meio à confusão e ao leve resquício de vergonha que ainda me resta na cara, comecei a juntar as palavras que ela dizia. Estuprador. De mulheres. Casadas. Vergonha. Sociedade machista. Capitalista. Sapatos. Preciso de sapatos. Meu marido. Aquele filha da puta. Não me dá uns sapatos. Aquele infeliz de merda. Minha vida é uma merda. Você é um merda. Que nem eu. Eu não quero mais isso pra mim. Eu não quero,não quero, não quero, não. Não. Quero.

E aí teve o garfo.

É. Eu tava ali parado, de boca aberta. Assistindo aquela cena ridícula. Pela primeira vez eu tive a curiosidade de olhar em volta. Pra ver os rostos voltados na nossa direção. Cabeças balançando na negativa. Olhares de espanto. Um garçom ou dois vindo de fininho pra tentar apartar a confusão. Talvez oferecessem um drinque de cortesia pra dama. E educadamente convidariam os dois cavaleiros a se retirar do recinto e não voltar mais por favor. Foi por conta da casa. Obrigado. Passar bem. Eu olhei em volta. Mas o bizarro era justamente isso.

Ninguém estava olhando. As pessoas continuavam ali, na mesma. Sem dar a menor importância pros gritos histéricos. Pra nós. Nada. Nem os garçons pareciam se dar conta. Como se a minha mesa estivesse envolvida por uma bolha invisível. A prova de som. Só eu, o Zé e aquela loira maluca gritando sem parar. Falando da vida dela. Não, gritando a vida dela a plenos pulmões. Eu não tava entendendo aquilo. Não fazia sentido.

E aí, teve o garfo.

Ela tava gritando algo sobre as contas. Sobre o filho do marido. Que não queria. Não queria não. Não. E aí, de repente, em menos de um segundo ela tava com o garfo na mão. Fiquei sobressaltado na hora. Achei que fosse partir pra cima. Claro. Era a coisa mais óbvia que uma doida podia fazer numa hora dessas, né? Mas não. Foi tudo bem rápido. Mas rápido do que meu cérebro conseguiu processar. Não deu tempo de entender. De conceber aquilo que ela fez.



continua...

terça-feira, 4 de outubro de 2011

O Sonho - Parte Final

Tudo que preciso é sacudir a cabeça. Assim bem rápido. Isso. Isso deve me acordar. Ou me beliscar, talvez. Funciona nos filmes. Olho pro alto. Não. O olho ainda está lá. Escancarado. Olhando pras pessoas, pros prédios. Pros pássaros voando no alto. Tento me esconder dele mais uma vez. Mas sei que não vai funcionar por muito tempo. Ele vai me achar. Vai olhar no fundo dos meus próprios olhos e ver dentro da minha alma. Corro agachado. Tentando me esconder atrás daquela árvore. Como se fosse adiantar de alguma coisa. Ele vai me achar. Vai me achar. O ronco continua. Ensurdecedor. A rua chega a balançar com o seu estrondo. Alto. Alto. Não posso mais ficar aqui. Levanto-me e dou de cara com a pupila monstruosa me fitando. Ele me achou. Está falando comigo agora. Acorda. Acorda. São oito horas. É hora de acordar. É hora de acordar.
O despertador falante do celular. Deve ser a invenção mais irritante da história da humanidade. Mas é infalível. Começa com um chiado irritante. Porque sempre esqueço o maldito celular no modo silencioso. Ele começa a vibrar sob a cômoda, fazendo um barulho que parece um ronco. Depois de insistir nisso por uns segundos, uma voz robótica enjoada começa a falar. É hora de acordar. É hora de acordar. Levanto afinal. Aperto qualquer botão pra fazer o maldito calar a boca. Levanto devagar e sento na cama. Não lembro o que andei sonhando. Mas me sinto mais cansado do que quando fui deitar. Tenho tido essa sensação com freqüência ultimamente. Maldito vinho. Crio forças pra levantar e começar mais um dia sozinho. Procuro o chinelo. Depois o outro. Levanto. Vou andando pra cozinha preparar meu café sozinho. Mas espera. A arma. Vou checar se ainda está na gaveta da cômoda. Não sei bem por que. Ninguém mora comigo pra poder ficar mexendo nas minhas coisas. A arma tem que estar lá, ora. Fico ali parado. Na dúvida se volto ou não volto pra checar. Melhor deixar pra lá. Que bobagem. Vou pra cozinha. Requento o café de ontem à noite. Ligo a tevê pra ver o que há. Mas sei lá. Não sinto vontade de tevê essa manha. O sol está lindo lá fora. Acho que vou sair pra dar uma caminhada. E saio assim de repente. Sem pensar muito a respeito. De pijamas mesmo. Abro a porta e dou de cara com o campo. Bem ao lado, um enorme tobogã com crianças brincando felizes. Molhando tudo em volta. Os carros passam por perto, quase atropelando as pessoas no gramado. Não estão nem aí. O prédio daonde sai é uma fábrica. De móveis. Igual a que papai trabalhava. Um palhaço é o porteiro. Ele ri. Não sei se ri pra mim ou de mim. Não importa mesmo. Qual é a graça num maluco que sai pra dar uma volta pelado as oito da manha depois de uma noite mal dormida? Estou pelado. Droga. Jurava que tinha colocado o pijama pelo menos. As pessoas passam e olham pra mim assustadas. Ouço um comentário. Dois. Ele tem garras mamãe. Ele parece um bicho. Um lagarto. Que nojo. Sou eu. Um bicho homem lagarto, sei lá. Olhos amarelos olhando pro mundo. Enojando o mundo. Mundo de merda. O tobogã das crianças é alto mesmo. Vai até as nuvens. Os pequenos vão subindo as escadas intermináveis e desaparecem atrás de uma nuvem. Só pra depois aparecerem de novo. Escorregando. Escorregando. Pra cair de cabeça na água fria. Mas não tem mais água. Aquele ali está escorregando na direção de uma parede de concreto. Preciso ajudar o pequeno. Antes que. Antes que. Um grito. Eles não me deixam chegar perto do pequeno. Sai pra lá seu asqueroso. Sai. Eles estão me segurando. O pequeno escorregando. Feliz, feliz. Mais depressa agora. Até que. Sangue e ossos no concreto. Mais gritos. É culpa dele. Culpa dele. Dele. Desse monstro. Eles estão em volta de mim. Por que é minha culpa? Se fui eu quem tentou ir lá pra salvar a pele do pequeno. Agora não é mais nada. Ossos e sangue. E nada mais. Estão em volta de mim. Os carros em volta param pra avançar em minha direção também. Vai ser um massacre. Só o sol está do meu lado. Olhando pra mim com aquele Olho Solitário. Igual ao meu. Em forma de fenda como o meu. Animal como o meu. Olho no olho. As pancadas começam e não vão terminar. Vão? Seu animal. Seu animal. Acorda. Acorda. É hora de acordar.
É hora de acordar. Pulo da cama. Completamente ensopado por baixo dos pijamas. Tremo da cabeça aos pés. Meu santo Deus. O que esta havendo comigo. O quê. O quê? Não gritei. Não por falta de tentativa. Não pude. A garganta está fechada. Como se tivesse gritado por horas a fio, em terror. Mas isso não me impediu de pular pra longe da cama. Uma tentativa desesperada de fugir. Sei lá. Não fiz muito barulho. De maneira que não a acordei. Seus cabelos negros por baixo da coberta. Uma mão pendendo pro meu lado. Abraçando o próprio ombro. Virada pra parede. Não posso ver seu rosto. Não quero. Não posso. Não vou olhar pro rosto. Não vou esperar ela virar pra mim. Não, não senhor.
Abro a gaveta da cômoda. A arma está lá. Graças a Deus. Sem hesitar, destravo a arma. Ainda tremo da cabeça aos pés mas não dá pra errar dessa distância. Ela acorda quando sem querer deixo um pente do revólver cair no chão, produzindo um estampido metálico. Levanta devagarzinho. Sem se voltar pra mim ainda. Só vejo os cabelos negros e agora os braços levantando pro ar numa espreguiçada por baixo da coberta.
Tremo muito. Não posso errar. Não posso. Não posso deixar ela se virar pra mim e me encarar com aqueles olhos amarelos de cobra. Atiro três vezes. Na cabeça. O sangue salpica o quarto inteiro. Sangue e uma coisa pegajosa meio amarelada que se estampa na parede branca. Acho que ela ia dizer alguma coisa um pouco antes do primeiro tiro. Poderia ser bom dia, amor. Ou talvez outra coisa. É talvez fosse outra coisa. Nunca vou saber. É tarde demais agora. É tarde demais agora e eu nunca vou saber. Tremo ainda. Preciso acordar. Preciso sair daqui e... acordar. É tudo que eu preciso. Que esse pesadelo acabe. De vez. Estou cansado. Terrivelmente cansado. Sento na cama de novo. De costas pro sangue, pra janela, pra ela. Só quero que isso acabe. Que isso acabe de uma vez. Tremo e suo muito ainda. Olho de esguelha pro canto perto da porta. Deixei a arma descasando em cima da cômoda. Mas está perto, caso precise dela de novo. De quando em quando olho de esguelha pela janela. Na direção do sol branco que cobre a terra. Esperando. Esperando sempre. A hora de acordar. Ela tem que chegar alguma hora não é mesmo?
O barulho infernal de ronco desapareceu. Agora só ouço sirenes lá fora. E gente gritando. E alguém batendo na porta da cozinha. Com força. Acendo um cigarro. A mão ainda tremendo muito. Abra essa porta. Abra essa porta agora. Eles gritam. Não tem mais monstro verde nenhum rondando o quarto. E nem as ruas. Eles só rondam a minha cabeça agora. Trazendo idéias esquisitas. A porta da cozinha é escancarada com um estrondo. Olho pra arma em cima da cômoda. Passos apressados dentro da casa. Minha mão vai devagar até o encontro do gatilho. É hora de acordar.
É hora de acordar.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

o sonho

Acordo sobressaltado. Olho ao redor. Tudo no lugar. A velha cômoda de mamãe com suas gavetas de mogno. O abajur branco com seu velho botão que insistia em se soltar. O armário de madeira cheirando a velho. A porta logo a frente da cama que dava direto pra suíte da nossa cama de casal. Tudo no lugar. Não tem motivo pra se sobressaltar. Só um pesadelo. Desses que te deixam sem saber direito o que é real e o que é sonho. Olho pro lado. Ela dorme tranqüila fazendo aquele barulho de motor velho. O mesmo há mais de quinze anos. Está virada pra parede, de costas pra mim de forma que só poso divisar seus cabelos negros, um ombro sob a camisola branca e os lençóis ocultando suas formas. Já foram menos generosas. Olho pra ela. Dou um suspiro e me preparo pra voltar a dormir um sono mais tranqüilo. Está tudo no lugar, afinal. Mas espera. E aquele vulto logo lá? Num cantinho, bem perto da fresta da porta. Encolhido. Escondidinho esperando que ninguém notasse. Só esperando que eu voltasse ao meu sono pra poder se esgueirar devagarzinho até a cabeceira da cama. E me apertar com aquelas mãozinhas verdes cheias de garras. Sim porque ele tem garras. E é verde. Dá pra ver daqui daonde estou.

Levanto de supetão. Procuro tremulo a arma na gaveta da cômoda. Que deveria estar no lugar também. Mas não está. Só vejo um buraco escuro quando abro a gaveta. E uma outra mãozinha asquerosa sai de dentro dela.Me arranha com força. O sangue jorra com vontade. Eu grito. Meu amor acorda de seu sono de pedra. Finalmente. O barulho de motor pára um instante. Só pra depois voltar. Mais alto do que nunca. Ela se levanta. Ainda sem olhar pra mim. Só vejo os cabelos negros. Voando livres com o vento que entra pela janela escancarada agora. Ela se volta pra mim. Sua face distorcida revela uma besta que mais lembra uma tartaruga, com olhos amarelos de cobra. Ela escancara a bocarra pra mim. Volta a dormir, bem. Foi só um sonho ruim.

Acordo assustado. Não compreendo como consegui dormir encharcado como estava. OS cabelos pingando no rosto não deixam colocar meus óculos sem que deslizem pelas minhas faces. Olho pro lado com medo. Meu amor não está lá. Levantou mais cedo pra trabalhar. Como de costume. O bom de ser um escritor é que não preciso ter um horário regrado pra bater o ponto toda manhã. Gostaria de vê-la Quanta bobagem, não é verdade? Minha amada transformada num monstro horrendo. Monstros no meu quarto. Um sonho de garotinho. Talvez deva escrever sobre isso mais tarde. Melhor anotar pra não esquecer. Pronto. Me levanto pra um café. Ela sempre deixa uma garrafa cheia pra mim. Sabe que eu sou movido a café. Antes de sair do quarto uma leve desconfiança. Pode ser coisa da minha cabeça. Mas dá pra ver um leve arranhãozinho na quina do armário. Bem onde eu andei sonhando com a mãozinha verde e pegajosa e cheia de garras. Doideira. Volto pra perto da cabeceira. Abro a gaveta de cima. Só pra ter certeza. A arma não está lá.

Que diabo? Será que ela escondeu? Vendeu, sei lá? Ela jura de pé junto que vai fazer isso desde que comprei o Colt há mais de quatro anos. A vizinhança anda muito insegura ultimamente. Eu tenho uma boa noção de tiro. Sou policial civil aposentado. Não representa perigo algum, é pra nossa segurança, eu digo a ela. Mas ela me escuta? Nunca. Deve ter vendido. Desgraçada. Sem nem me avisar. Vamos ter uma briga boa quando ela voltar pra casa do trabalho de escritório no centro.

Sento pro café. Ligo a teve da cozinha descansado, só pra ver as noticias da manha. Monstros. Aparentemente, pequenas figurinhas verdes correm pela cidade destruindo tudo que encontram pela frente. Meu coração dispara. A arma. Se ao menos tivesse a maldita arma ainda. Poderia me proteger. Deles. Uma sombra passa pela janela. Meu coração congelado me faz parar onde estou. Quieto. Talvez eles não me vejam. Tarde demais. Uma delas anda em minha direção. Escorregando pela janela. Olhinhos de cobra fixos em mim. Abre um sorrisinho nojento liberando um hálito de morte que faz minha nuca gelar. Devagar agora. Devagar. Corro para a sala desesperado. Tarde demais ele avança em minha orelha. Mordendo com força e lambendo. Como se a língua se esticasse até chegar as profundezas do meu cérebro. Um beijo longo, molhado e...

O despertador vibra em cima da cabeceira. Está no mesmo lugar de sempre.Ela está ao meu lado. O cheiro fresco como a manhã. Beijando minha orelha com carinho. Esta um pouco atrasada, mas não se importa. Você esteve gemendo a noite toda, o que você andou sonhando, ela pergunta. Nada que possa me lembrar. Só algo com coisinhas verdes e a arma e...a arma. Abro a gaveta de repente. Ela se assusta. Já pedi pra se livrar dessa coisa. Por que é que você não me escuta? A arma está lá. Graças a Deus. Não sei por que. Só no caso de precisar. Vai que alguma coisa verde resolve aparecer na casa e...

Ela se levanta pra se arrumar. Vou atrás dela. Vou fazer o café hoje só pra fazê-la contente. Ligo o rádio. Está tocando nossa música favorita. Boto duas fatias de pão pra torrar. Começo a esquentar o leite. Enquanto ela toma banho resolvo ir lá fora pra olhar direito pro céu azul e o sol quente que anuncia o verão chegando pela nossa varanda. Mas. Onde esta o sol? No lugar dele um olho imenso de cobra me espia pelos céus. Tento me esconder dele mas não consigo. Saio desembestado pelas escadas do prédio. Ainda de pijamas. Não importa. Tenho que ver lá de baixo essa coisa bizarra que esta acontecendo no mundo. As pessoas na rua não parecem ter percebido anda de anormal. O velho porteiro acena com a cabeça quando passo. A velha do sete já voltou com a sacola cheia d e pães do mercado ao lado. Bom dia. O que tem de bom. Você não viu esse olho? Não tá vendo esse olho de cobra no céu? Qual o problema com vocês todos? Vocês não percebem que...que...

É um sonho. É lógico. É a única explicação. Ainda estou dormindo na minha cama. O despertador ainda nem tocou. Eu devo ter bebido demais na noite anterior. E comido também, por falar nisso. E ainda estou ali. Na minha cama. Ela deve estar dormindo do meu lado. Isso explica esse som de motor velho que não sai da minha cabeça; E começa a ficar mais e mais alto a medida que me dou conta de sua existência irritante.



CONTINUA...