domingo, 16 de dezembro de 2012

Toque de recolher



É. Por essa eu não esperava. Quer dizer, como você pode saber que hoje é o último dia da sua vida? E por mais louco que esse mundo esteja você nunca considera a possibilidade de uma morte horrorosa. Não. Hoje não. E o mundo anda cada vez mais louco. Já fazem alguns anos. Desde quando? Meados de 2013 quando elas apareceram pela primeira vez. Acho que foi em fevereiro. Ou um pouco antes do natal de 2012. Já nem lembro mais.Que diferença faz afinal?
Eu comecei com essa coisa de desobedecer ao toque de recolher tem um mês. Ouvi dizer que uns amigos faziam isso e tomei coragem também. Ah, foda-se. A vida é curta demais, tá ligado?  A minha por exemplo, tá acabando hoje.
É tudo tão silencioso na rua de noite. Bem mais fresco, principalmente essa época do ano. Você sai andando e não encontra uma alma viva em quilômetros. Nenhum som, nenhum pastor chato gritando em cada esquina sobre o apocalipse. Nenhum polícia apitando pra você voltar pra casa correndo. Nada. Só a sua respiração e os seus passos perdidos.
Quando eu desobedeci pela primeira vez parecia um rato me esgueirando pelas sombras das vielas. Cada suspiro do vento fazia meu coração parar. Cada gato miando na esquina era certeza de morte. E como tem gatos hoje em dia. Pretos, brancos, amarelos, cinzentos. Comendo as coisas que a gente larga por ai. Os corpos que a gente larga por aí...Essas putas adoram gatos. E detestam quem não adora.
Eu invadi um bar do lado de casa que logicamente fechava às cinco horas da tarde. Assim como todo o comércio, casa, mercado, colégio e puteiro. Surrupiei meia dúzia de long necks e sai depressa. O coração a mil. Dá pra imaginar? Não vi nada.
Só ouvi uma coisa:  o grito de uma delas. Deveria ter vindo de um raio de sei lá...quinze quilômetros. É, elas gritam bem alto. Quando ouvi, cai de joelhos no chão e fiquei ali parado que nem um animal assustado por um minuto ou dois. Levantei com os joelhos trêmulos e esfolados e me tranquei em casa. Nem tomei as long necks. Larguei na geladeira e fui me lavar. Tinha me mijado nas calças.
Com o sucesso da primeira fugida ao toque de recolher, comecei a tomar ainda mais coragem. As coisas não pareciam tão ruins quanto as pessoas comentavam. Os jornais são sensacionalistas demais. Quer dizer, de quando em quando você ouve um grito delas no meio da noite, mas nunca é muito perto. Em todas minhas saídas eu nunca cheguei a ver nenhuma. Dizem que elas estão migrando. Ninguém sabe praonde. Talvez elas estejam indo embora. Eu sou um cara otimista. Talvez elas estejam voltando pro inferno daonde saíram do nada em 2012. Talvez elas nunca mais voltem. Provavelmente não. Mas não custa nada sonhar um pouco, porra. É disso que as pessoas precisam hoje em dia. Sonhar, acreditar em dias melhores. Tá ligado?
Foi com essa presença de espírito que caguei pro  toque de recolher essa noite. Que acabou sendo a Minha Última noite. Quem diria. Resolvi sair só por cinco minutos. A lua tá tão linda hoje. É tentação demais. Acendi um cigarro e encostei o portão bem de leve. A rua naquele silencio costumeiro. Andei uns trinta metros, dei aquela respirada e olhei pras estrelas. Que noite linda. Eu já tava me virando pra voltar pra casa, juro.
Mas aí uma sombra passou pelo poste da rua. Eu já sabia o que era antes mesmo de ver. Antes mesmo de ouvir. Elas vieram. Eram três. Vieram voando. Rostos gelados. Esqueléticos. Mortos. Pálpebras carcomidas pelo tempo projetam olhos horrendos em minha direção. Cabelos brancos esvoaçantes. As roupas brancas. Dançam sem vento.Chega a ser uma heresia uma visão tão tenebrosa vestir uma coisa tão branca. Aparecem do nada. De repente uma delas está lá ao lado. A mais feia. Dá pra acreditar no meu azar? Rosto colado ao meu. Olhos nos olhos. Não consigo emitir som. Acabou todo meu som. Minha música. Acabou tudo em mim.
Garras pontudas em meus ombros. Estou sendo levantado. Devagar. Não consigo nem me debater. O medo me congelou. Só consigo olhar pra ela. Quisera ser cego. Não sou. Mas o pior é o grito. Ele penetra nas profundezas do seu ser. Revira tudo de pernas pro ar lá dentro da tua cabeça. Sacode. Joga pro alto e depois larga tudo em completa desordem. Mesmo que eu sobrevivesse...nunca mais seria eu de novo.
Enquanto ela morde minhas costas, sinto a pele enrugar, apodrecer, virar cinza. Virar nada. Não sou nada. Nada mais. De repente, uma ultima faísca brilha dentro de mim. Enfio o cigarro no olho podre da bruxa. Ela grita e grita mais. Minha cabeça vai explodir, mas não to nem aí. Essa vadia vai lembrar de mim amanha, ah vai. Ela me soltou no ar. Estávamos voando alto pela rua escura. O que? Uns trinta metros. A minha queda foi em câmera lenta. Que nem nos filmes, sabe como é?
E assim fui caindo devagar. Pensando em mamãe e em toda baboseira que nunca disse, toda gostosa que nunca vou comer, todas as promessas quebradas, toda mentira que contei, a porra da janela que eu jurei que ia consertar domingo que vem (há mais de dois anos), as musicas que nunca compus,  os amigos que fiquei de visitar mas nunca fui, o meu sonho de nadar pelado na piscina da faculdade, os livros que nunca li, aquele filme que fiquei de ver, a...