segunda-feira, 26 de setembro de 2011

A barca - continuando

A barca demorou um pouco mais aquela noite. Chegou deslizando quando faltavam pouco menos de cinco, seis minutos para as dez horas. Costumava observar ao longe, por trás do portão fechado enquanto as luzes surgiam no horizonte da baía escura. A velha barca vinha devagar ate parar quando encostasse no cás. As pessoas se amontoavam na frente do portão quando a avistavam. E quando faltavam cinco minutos para as dez, os portões se abriam e o fluxo continuo de pessoas se deslocava cansado para o interior da embarcação. Costumavam lotar pouco menos da metade dos lugares. Todos sentados. O oposto do que se via nos horários de pico. Somente uma meia dúzia de tripulantes da barca permaneciam em pé, nas laterais. Ajudando as velhinhas a subir e descer e apontando a direção do banheiro para quem precisasse.

As pessoas iam se acomodando em qualquer lugar pelos dois andares da barca. Os viciados em nicotina iam pros fundos, na única área aberta pra fumar. Eu gostava de viajar ali nas noites claras. Observar a cidade maravilhosa se distanciando na noite estrelada por sobre a baía. Deixando pra trás toda minha preocupação. Todo cansaço. Todo medo. Ate que tudo não passasse de um cortina de fumaça perdida no meio da noite.

Mas a noite de hoje não é uma noite clara.

Então me acomodo desleixado em um dos bancos no meio. Pra me entregar ao sono costumeiro de quando viajo sentado. Coloco os fones de ouvido e aumento o volume com a minha musica favorita da semana. Fui um dos primeiros a sentar. Ao longe vejo o velho Cartola sentando numa poltrona bem à frente. Ele olha por cima do ombro uma vez. Talvez em minha direção. Não dá pra saber. Os trabalhadores vão ocupando os lugares preguiçosamente. As secretarias amigas sentam na fileira ao lado. Essa sim, tive certeza de que me deu uma longa olhada antes de sorrir e sentar na cadeira perto da janela a minha esquerda. Fecho os olhos voluntariamente. Não estou tão cansado a ponto de desmaiar ali mesmo. Mas sinto a vontade de dormir um pouco antes de pegar a segunda condução da noite e dormir na minha cama enfim.Demorou uns bons cinco minutos pra barca fechar as portas e finalmente começar a se mexer sobre as águas negras da baía. Quando o motor começou a roncar aquela lamúria chata eu já estava naquele estado de limiar da consciência. Quando as imagens da sua mente vão passando devagar e começam a parar de fazer sentido racional. E antes de mergulhar na completa escuridão de meus sonhos a última coisa que ouvi foi o apito da barca mergulhando na noite antes de partir.

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Não sei ao certo o que me acorda toda vez. Costumo acordar na hora exata. Quando as pessoas começam a se levantar e ir em direção a saída antes da barca parar completamente quando chega no outro lado da baía. Não sei ao certo o que me acorda. Mas eu costumo abrir os olhos nessa etapa e me arrastar pra junto do aglomerado de gente querendo ir pra casa.

Não sei ao certo o que me acordou dessa vez. Provavelmente foi alguma coisa diferente das outras vezes. Porque a noite de hoje é uma noite diferente. Quer dizer. Toda noite é diferente. Mas essa é única.

A primeira coisa que vi quando abri os olhos foi o céu estrelado pela janela. O estranho é que nunca dá pra ver o céu lá de dentro por causa das luzes. E isso me atentou para o detalhe de que todas as luzes da barca tinham se apagado.

Não sou do tipo que se sobressalta a toa, mas aquilo realmente era algo estranho. Uma pane elétrica no meio da baía no meio da noite. Droga. Minha sorte não tá a fim de mudar. Meu primeiro impulso foi buscar o celular no bolso. Morto. Merda. Esqueci de carregar a bateria de novo. Odeio essas coisas tecnológicas. Com suas baterias. Não tinha ninguém sentado perto de mim. No fundo da barca, como estava, nunca tem ninguém. As pessoas preferem sentar mais a frente. Olhei para os lados. Lembrei das secretárias, perto da janela. A luz que entrava na embarcação era escassa mas era suficiente pra ver que não havia ninguém lá. Nem na frente. Nem nas laterais. Nem atrás de mim. Nem em lugar algum. O primeiro andar da barca estava completamente abandonado. Perguntei-me por quanto tempo estava assim, dormindo.

Prestei atenção ao barulho do motor. Ausente. A barca estava parada.

Filhas da puta. Me deixaram dormindo aqui depois de esvaziar o lugar na ultima viagem da noite. Vou processar esses canalhas. Profissionais de merda. Como não me viram aqui? Porra.

Mas tem algo errado. Não estou no porto. Estou em algum ponto no meio da baía. A noite escura ainda mais escondida pela névoa fantasmagórica que paira sobre as águas. As luzes distantes indicam que não estou nem perto de um lado nem de outro. Devo estar em algum lugar do meio. Bem no meio, talvez.

Mas então o que diabo aconteceu? Onde estão todos? Onde eu estou, porra? Por que a barca parou? Onde esta a tripulação? A sala de máquinas silenciosa. Abra a porta, ignorando a placa que impede a minha entrada. Alô? Tem alguém ai embaixo? Sem resposta.

Subo as escadas pra o segundo andar. Talvez estejam todos La. Por alguma razão. Além do mais,a sala do capitão fica ali. Ele tem que estar ali, certo? Certo?