terça-feira, 1 de abril de 2014

O esquerdista

O tapa na cara me trouxe de volta. Pra onde? Você me pergunta. Depois do terceiro dia eles me convenceram. Pro inferno. Eu passeava pelas camadas do inferno entre meus curtos períodos de sono e a forcada vigília. Ao invés de Dante, meu condutor era o diabo. O diabo vestia uniforme, bota e óculos escuros. E sempre fazia questão de me acordar. Os ajudantes do diabo gritavam pra tentar me fazer falar alguma coisa que não tenho mais a capacidade de compreender.
O cheiro de carne queimada é quase gostoso. Não lembro quando foi a última vez que me deram de comer. Parece uma eternidade. Não tenho certeza se lembro do gosto de comida alguma. Mas do cheiro sim. Churrasquinho. Bem passado.
Já cheguei num ponto onde não sinto mais dor. Não sinto nada. Nem o tempo passando em segundos angustiantes pontuados pelos meus gritos. No começo, achei que fosse mais alguém gritando do quarto ao lado. Pode ter sido só uma impressão. Não e possível que alguém cometa tamanho atentado à vida humana no mesmo dia. Ao mesmo tempo. No quarto ao lado. Agora estou convencido de que sou eu mesmo. Sou eu quem grita. Embora não sinta a dolorosa vibração de minhas cordas vocais. Embora meus sentidos embaralhados não saibam mais discernir ou assimilar nada da realidade.
A cada choque uma nova lembrança. O dia em que entrei pra faculdade de Direito. O dia em que me filiei ao partido. O dia em que minha filha nasceu. A cada nova corrente que atravessava meu corpo como uma onda…Mais uma lembrança parecia se esgueirar de mim. Pra sempre.
Meus olhos reviravam nas órbitas e tinha a certeza de que podia enxergar o lado oposto. Pra dentro do meu cérebro. Eles riam de mim. O diabo e seus ajudantes. Riam e cuspiam e batiam. Com suas botas e cassetetes. Eles, burros que eram não percebiam. Eu não sentia mais. Eu não sentia dor. Eu era a dor.
Um deles agarrou meu braço enquanto o outro me segurava com um mata-leão. Meus olhos revirados tentaram fixar o novo foco de sua sandice. Minha mão. Ou a coisa que eu chamava de mão. Costumava usar para tocar violão. Um deles puxou um alicate e o fixou bem embaixo da unha. Pressionou e puxou uma vez. Gritei. Ou alguém gritou. Não tenho certeza mais. Não doeu. Já disse. Não sinto mais tal coisa. Gritei pelo horror da visão. Aquela coisa que fazia parte de mim tirada assim. Sob gritos inteligíveis e mais socos na boca.
Mais interrogações. Mesmo que pudesse compreender alguma palavra, não poderia responder. Não tinha mais voz. Tenho a estranha sensação de me ver de cima. Amarrado àquela cadeira de metal. Um rosto desfigurado. O pênis para fora das calças com um pedaço de arame enfiado no buraco por onde costumava urinar. O diabo cansou da brincadeira. Ou se convenceu de que não sei (ou não posso) dar as respostas certas as suas perguntas sem fim.
Virou de repente. Encostou o revólver na minha têmpora e atirou uma vez. O jorro de sangue e miolos sujou seu uniforme. Como sei disso? Já não sei explicar. Só sei que apesar de contemplar meu corpo caído sendo arrastado como um boneco pelos outros soldados…Ainda posso ouvir o som de gritos. De muitos e muitos outros gritos. Vinham dos quartos ao lado, afinal.
O inferno é um lugar horrível.