domingo, 4 de novembro de 2012

A Carta - Parte Um


No instante em que entre na cidade sabia que algo havia mudado. Pra pior. Não sei dizer bem o que. Mas algo está muito errado. Assim, esquisito, diferente. Sei lá. Aquela casa velha logo ali. Aquelas sombras das arvores mais adiante. Aquela colina ao longe anunciando a retirada do Sol. O vento gelado. Não gelado o bastante pra te fazer colocar o casaco, veja bem. Mas aquele vento chato que te pega desprevenido e deixa os pelinhos do braço todos em pé. Sabe como é? Claro que sabe.
Não se via alma viva em canto algum. Nenhum velho fazendeiro sentado a um canto da varanda vendo a vida passar. Nem um bando de crianças brincando na rua de terra batida. Nem uma dona qualquer pendurando roupa no varal. Nada. Nem um som de gente. De carro, de musica, de grito, de papo furado, nada. Coisa esquisita.
Sinto saudades daqui. Não gosto de admitir, mas sinto sim. As lembranças vêm fluindo assim enquanto passo com o carro pelas ruas. Minhas velhas conhecidas.  Se é que se pode chamar esse buraco de rua. Lembro que foi ali onde quebrei a perna jogando a bola. Devia ter o quê? Seis? Oito anos de idade. E nossa. Ali mais adiante a padaria do velho Portuga. Mesquinho do caralho. Costumava mordiscar um pouco de doce de leite que o velhote deixava debaixo do papel de embrulho da bancada. Ele viu uma vez e me deu uns belos petelecos na orelha. E lá. Nossa. O portão da escola. Igualzinho na minha memória. Só mudou a cor do paredão. Foi ali que dei meu primeiro beijo. Qual era mesmo o nome da pequena? Laís? Maria? Carlinha? Que diferença faz?
E nada de alguém mostrar a cara. Que esquisito. Será que é feriado de alguma coisa e eu não tô sabendo? Não importa. E pra quê eu vim, você me pergunta. Justa questão. Me pergunto a mesma coisa desde que saí da cama às cinco da madrugada pra cair na estrada.
Foi por causa da carta.
Explico. Saí da cidade quando tinha quinze anos. Pai bêbado espancador. Mãe bêbada desempregada. Um clássico. Só que encheu o saco. Depois da ultima surra, juntei minhas coisas e peguei carona com um caminhão que ia passando pela rodovia ao lado da cidade em direção ao Rio. Nunca mais voltei. Até hoje. Por causa da carta.
E tinha mais motivos pra se querer sumir desse buraco. Por exemplo, tinha a hipocrisia e estupidez das pessoas. Tinha um padre, veja bem. Um velho filha da puta que tomava conta da vida de todo mundo e comia o coroinha depois da missa de domingo. Tinha um delegado. Um quarentão que fedia a cachaça barata e volta e meia botava alguma garotinha na viatura caindo aos pedaços pra dar uma volta. Tinha o meu pai. Que era o bibliotecário da cidade mas nunca lia porra nenhuma. Só um punhado de livros pretos que ele pegou depois que a velha morreu.
Ah. Não falei da velha ainda. Pois bem.
 Tinha a velha doida. A coisa mais bizarra que se podia encontrar no interior do Rio. Ela sempre me dava arrepios. Uma velha bisonha que não saia de casa nunca, só pra ir à missa de domingo. Andava com o mesmo vestido branco amarelado de sempre. Parecia uma cortina manchada. Os cabelos grisalhos soltos e desgrenhados. Sempre com aqueles colares. Um bando de colares brancos que envolviam o pescoço inteiro. Entravam por dentro dos peitos murchos e vinham dando voltas até chegar aos pulsos passando por dentro do vestido.  Se você olhava de longe dava pra confundir aquilo com um colar de pérolas. Mas se você olhava mais de perto (e todo mundo evitava isso) era assustador. Não dava pra entender direito que tipo de pedra branca constituía aquele colar. Uma vez passei mais perto e eu juro pela Virgem, que vi uma das pedras Olhar pra mim. E pedra olha alguma coisa por acaso? Explico. De pertinho assim, algumas pedras tinham dois furinhos grandes e dois furinhos pequenos. E na parte de baixo de cada pedra, uns adornos que pareciam um monte de dentinhos. Se você prestasse um pouco mais de atenção, aquelas pedras bem lembravam um monte de caveira. Tipo essas que a gente vê em bandeira de pirata. Sabe o que tô falando?
Um monte de caveirinhas bem pequenas presas umas as outras por um barbante contorcido. Caveira de bebê que não nasceu. Fico arrepiado só de lembrar. E naquela vez que passei perto demais, uma delas virou pra mim. Olhou pra mim. Claro que a garotada riu da minha cara quando contei. Afinal, ninguém tava disposto a tirar a prova e ver por si mesmo. Claro que falei pra minha mãe. Que contou pro meu pai. Que me deu um tapa na cara logo depois pra eu parar de ficar inventado coisa. Mas que ficou com uma pulga atrás da orelha, sei lá por quê.
Ninguém chegava muito perto da velha doida. A gente ria. Mas de longe. De bem longe. Tem gente que fede. Mas essa velha ia além. A sorte é que a desgraçada sentava sempre na última fileira de bancos na missa. Mas em janeiro era impossível. Dava pra sentir ela chegando do outro lado da capela. Não era um fedor normal. Era alguma coisa podre, sabe? Aquele cheiro azedo de coisa morta?
E às vezes. Pensando bem. Às vezes, aquela velhota bem poderia estar mesmo morta. Parece doideira. Eu sei. Mas era um tópico que volta e meia vinha a tona no grupo de moleques sentados na beira da calçada depois das partidas de futebol. A velha tá morta já. Só falta alguém avisar a ela. A molecada ria. Rá. Bons tempos. Mas logo depois a gente ficava quieto. Sei lá. Era como se falar mal da velha deixasse o ar mais pesado. Mais quente, sabe? Como se ela pudesse escutar a gente lá do casarão onde ela se escondia. Como se a raiva dela chegasse até a gente, assim pelo ar. Vindo devagarzinho com mãos invisíveis pelo ar pra apertar nossos pescoços.
Nessas horas, o Toinho fazia barulho de peido com o sovaco. Pra dar uma quebrada no clima ruim.  Era Toinho? Ou Cláudio? Ou Wellington? Sei lá. A gente ria e logo esquecia da velha. Era o mais comédia do grupo de moleques sujos.
Sinto falta deles. Não lembro o nome de quase nenhum. Mas sinto falta mesmo assim. Será que os reconheceria se visse ali sentados no bar de esquina tomando sua cerveja? Será que me reconheceriam? Acho difícil. Mudei demais. A cidade muda a gente. A dor muda a gente. A vida muda a gente. E eu sofri demais. Vivi demais. Mudei demais.
O que mais mudou?
O carro vai passando uma rua de terra batia. A rua do casarão da velha. Ainda no mesmo lugar. Virei quase que por superstição. Por extinto, sabe? Virei pro janelão da frente da casa. E na janela do alto, um vulto de cabelo desgrenhado com vestido amarelado. Todos os pêlos do meu corpo arrepiaram ao mesmo tempo. Engasguei com a própria saliva e pisquei. O vulto tinha sumido.
A figura da velha ainda tinha o mesmo efeito sobre mim.
Meu pai dizia que tem coisas que não mudam nunca. Bom, isso não mudou.