domingo, 16 de dezembro de 2012

Toque de recolher



É. Por essa eu não esperava. Quer dizer, como você pode saber que hoje é o último dia da sua vida? E por mais louco que esse mundo esteja você nunca considera a possibilidade de uma morte horrorosa. Não. Hoje não. E o mundo anda cada vez mais louco. Já fazem alguns anos. Desde quando? Meados de 2013 quando elas apareceram pela primeira vez. Acho que foi em fevereiro. Ou um pouco antes do natal de 2012. Já nem lembro mais.Que diferença faz afinal?
Eu comecei com essa coisa de desobedecer ao toque de recolher tem um mês. Ouvi dizer que uns amigos faziam isso e tomei coragem também. Ah, foda-se. A vida é curta demais, tá ligado?  A minha por exemplo, tá acabando hoje.
É tudo tão silencioso na rua de noite. Bem mais fresco, principalmente essa época do ano. Você sai andando e não encontra uma alma viva em quilômetros. Nenhum som, nenhum pastor chato gritando em cada esquina sobre o apocalipse. Nenhum polícia apitando pra você voltar pra casa correndo. Nada. Só a sua respiração e os seus passos perdidos.
Quando eu desobedeci pela primeira vez parecia um rato me esgueirando pelas sombras das vielas. Cada suspiro do vento fazia meu coração parar. Cada gato miando na esquina era certeza de morte. E como tem gatos hoje em dia. Pretos, brancos, amarelos, cinzentos. Comendo as coisas que a gente larga por ai. Os corpos que a gente larga por aí...Essas putas adoram gatos. E detestam quem não adora.
Eu invadi um bar do lado de casa que logicamente fechava às cinco horas da tarde. Assim como todo o comércio, casa, mercado, colégio e puteiro. Surrupiei meia dúzia de long necks e sai depressa. O coração a mil. Dá pra imaginar? Não vi nada.
Só ouvi uma coisa:  o grito de uma delas. Deveria ter vindo de um raio de sei lá...quinze quilômetros. É, elas gritam bem alto. Quando ouvi, cai de joelhos no chão e fiquei ali parado que nem um animal assustado por um minuto ou dois. Levantei com os joelhos trêmulos e esfolados e me tranquei em casa. Nem tomei as long necks. Larguei na geladeira e fui me lavar. Tinha me mijado nas calças.
Com o sucesso da primeira fugida ao toque de recolher, comecei a tomar ainda mais coragem. As coisas não pareciam tão ruins quanto as pessoas comentavam. Os jornais são sensacionalistas demais. Quer dizer, de quando em quando você ouve um grito delas no meio da noite, mas nunca é muito perto. Em todas minhas saídas eu nunca cheguei a ver nenhuma. Dizem que elas estão migrando. Ninguém sabe praonde. Talvez elas estejam indo embora. Eu sou um cara otimista. Talvez elas estejam voltando pro inferno daonde saíram do nada em 2012. Talvez elas nunca mais voltem. Provavelmente não. Mas não custa nada sonhar um pouco, porra. É disso que as pessoas precisam hoje em dia. Sonhar, acreditar em dias melhores. Tá ligado?
Foi com essa presença de espírito que caguei pro  toque de recolher essa noite. Que acabou sendo a Minha Última noite. Quem diria. Resolvi sair só por cinco minutos. A lua tá tão linda hoje. É tentação demais. Acendi um cigarro e encostei o portão bem de leve. A rua naquele silencio costumeiro. Andei uns trinta metros, dei aquela respirada e olhei pras estrelas. Que noite linda. Eu já tava me virando pra voltar pra casa, juro.
Mas aí uma sombra passou pelo poste da rua. Eu já sabia o que era antes mesmo de ver. Antes mesmo de ouvir. Elas vieram. Eram três. Vieram voando. Rostos gelados. Esqueléticos. Mortos. Pálpebras carcomidas pelo tempo projetam olhos horrendos em minha direção. Cabelos brancos esvoaçantes. As roupas brancas. Dançam sem vento.Chega a ser uma heresia uma visão tão tenebrosa vestir uma coisa tão branca. Aparecem do nada. De repente uma delas está lá ao lado. A mais feia. Dá pra acreditar no meu azar? Rosto colado ao meu. Olhos nos olhos. Não consigo emitir som. Acabou todo meu som. Minha música. Acabou tudo em mim.
Garras pontudas em meus ombros. Estou sendo levantado. Devagar. Não consigo nem me debater. O medo me congelou. Só consigo olhar pra ela. Quisera ser cego. Não sou. Mas o pior é o grito. Ele penetra nas profundezas do seu ser. Revira tudo de pernas pro ar lá dentro da tua cabeça. Sacode. Joga pro alto e depois larga tudo em completa desordem. Mesmo que eu sobrevivesse...nunca mais seria eu de novo.
Enquanto ela morde minhas costas, sinto a pele enrugar, apodrecer, virar cinza. Virar nada. Não sou nada. Nada mais. De repente, uma ultima faísca brilha dentro de mim. Enfio o cigarro no olho podre da bruxa. Ela grita e grita mais. Minha cabeça vai explodir, mas não to nem aí. Essa vadia vai lembrar de mim amanha, ah vai. Ela me soltou no ar. Estávamos voando alto pela rua escura. O que? Uns trinta metros. A minha queda foi em câmera lenta. Que nem nos filmes, sabe como é?
E assim fui caindo devagar. Pensando em mamãe e em toda baboseira que nunca disse, toda gostosa que nunca vou comer, todas as promessas quebradas, toda mentira que contei, a porra da janela que eu jurei que ia consertar domingo que vem (há mais de dois anos), as musicas que nunca compus,  os amigos que fiquei de visitar mas nunca fui, o meu sonho de nadar pelado na piscina da faculdade, os livros que nunca li, aquele filme que fiquei de ver, a...



domingo, 4 de novembro de 2012

A Carta - Parte Um


No instante em que entre na cidade sabia que algo havia mudado. Pra pior. Não sei dizer bem o que. Mas algo está muito errado. Assim, esquisito, diferente. Sei lá. Aquela casa velha logo ali. Aquelas sombras das arvores mais adiante. Aquela colina ao longe anunciando a retirada do Sol. O vento gelado. Não gelado o bastante pra te fazer colocar o casaco, veja bem. Mas aquele vento chato que te pega desprevenido e deixa os pelinhos do braço todos em pé. Sabe como é? Claro que sabe.
Não se via alma viva em canto algum. Nenhum velho fazendeiro sentado a um canto da varanda vendo a vida passar. Nem um bando de crianças brincando na rua de terra batida. Nem uma dona qualquer pendurando roupa no varal. Nada. Nem um som de gente. De carro, de musica, de grito, de papo furado, nada. Coisa esquisita.
Sinto saudades daqui. Não gosto de admitir, mas sinto sim. As lembranças vêm fluindo assim enquanto passo com o carro pelas ruas. Minhas velhas conhecidas.  Se é que se pode chamar esse buraco de rua. Lembro que foi ali onde quebrei a perna jogando a bola. Devia ter o quê? Seis? Oito anos de idade. E nossa. Ali mais adiante a padaria do velho Portuga. Mesquinho do caralho. Costumava mordiscar um pouco de doce de leite que o velhote deixava debaixo do papel de embrulho da bancada. Ele viu uma vez e me deu uns belos petelecos na orelha. E lá. Nossa. O portão da escola. Igualzinho na minha memória. Só mudou a cor do paredão. Foi ali que dei meu primeiro beijo. Qual era mesmo o nome da pequena? Laís? Maria? Carlinha? Que diferença faz?
E nada de alguém mostrar a cara. Que esquisito. Será que é feriado de alguma coisa e eu não tô sabendo? Não importa. E pra quê eu vim, você me pergunta. Justa questão. Me pergunto a mesma coisa desde que saí da cama às cinco da madrugada pra cair na estrada.
Foi por causa da carta.
Explico. Saí da cidade quando tinha quinze anos. Pai bêbado espancador. Mãe bêbada desempregada. Um clássico. Só que encheu o saco. Depois da ultima surra, juntei minhas coisas e peguei carona com um caminhão que ia passando pela rodovia ao lado da cidade em direção ao Rio. Nunca mais voltei. Até hoje. Por causa da carta.
E tinha mais motivos pra se querer sumir desse buraco. Por exemplo, tinha a hipocrisia e estupidez das pessoas. Tinha um padre, veja bem. Um velho filha da puta que tomava conta da vida de todo mundo e comia o coroinha depois da missa de domingo. Tinha um delegado. Um quarentão que fedia a cachaça barata e volta e meia botava alguma garotinha na viatura caindo aos pedaços pra dar uma volta. Tinha o meu pai. Que era o bibliotecário da cidade mas nunca lia porra nenhuma. Só um punhado de livros pretos que ele pegou depois que a velha morreu.
Ah. Não falei da velha ainda. Pois bem.
 Tinha a velha doida. A coisa mais bizarra que se podia encontrar no interior do Rio. Ela sempre me dava arrepios. Uma velha bisonha que não saia de casa nunca, só pra ir à missa de domingo. Andava com o mesmo vestido branco amarelado de sempre. Parecia uma cortina manchada. Os cabelos grisalhos soltos e desgrenhados. Sempre com aqueles colares. Um bando de colares brancos que envolviam o pescoço inteiro. Entravam por dentro dos peitos murchos e vinham dando voltas até chegar aos pulsos passando por dentro do vestido.  Se você olhava de longe dava pra confundir aquilo com um colar de pérolas. Mas se você olhava mais de perto (e todo mundo evitava isso) era assustador. Não dava pra entender direito que tipo de pedra branca constituía aquele colar. Uma vez passei mais perto e eu juro pela Virgem, que vi uma das pedras Olhar pra mim. E pedra olha alguma coisa por acaso? Explico. De pertinho assim, algumas pedras tinham dois furinhos grandes e dois furinhos pequenos. E na parte de baixo de cada pedra, uns adornos que pareciam um monte de dentinhos. Se você prestasse um pouco mais de atenção, aquelas pedras bem lembravam um monte de caveira. Tipo essas que a gente vê em bandeira de pirata. Sabe o que tô falando?
Um monte de caveirinhas bem pequenas presas umas as outras por um barbante contorcido. Caveira de bebê que não nasceu. Fico arrepiado só de lembrar. E naquela vez que passei perto demais, uma delas virou pra mim. Olhou pra mim. Claro que a garotada riu da minha cara quando contei. Afinal, ninguém tava disposto a tirar a prova e ver por si mesmo. Claro que falei pra minha mãe. Que contou pro meu pai. Que me deu um tapa na cara logo depois pra eu parar de ficar inventado coisa. Mas que ficou com uma pulga atrás da orelha, sei lá por quê.
Ninguém chegava muito perto da velha doida. A gente ria. Mas de longe. De bem longe. Tem gente que fede. Mas essa velha ia além. A sorte é que a desgraçada sentava sempre na última fileira de bancos na missa. Mas em janeiro era impossível. Dava pra sentir ela chegando do outro lado da capela. Não era um fedor normal. Era alguma coisa podre, sabe? Aquele cheiro azedo de coisa morta?
E às vezes. Pensando bem. Às vezes, aquela velhota bem poderia estar mesmo morta. Parece doideira. Eu sei. Mas era um tópico que volta e meia vinha a tona no grupo de moleques sentados na beira da calçada depois das partidas de futebol. A velha tá morta já. Só falta alguém avisar a ela. A molecada ria. Rá. Bons tempos. Mas logo depois a gente ficava quieto. Sei lá. Era como se falar mal da velha deixasse o ar mais pesado. Mais quente, sabe? Como se ela pudesse escutar a gente lá do casarão onde ela se escondia. Como se a raiva dela chegasse até a gente, assim pelo ar. Vindo devagarzinho com mãos invisíveis pelo ar pra apertar nossos pescoços.
Nessas horas, o Toinho fazia barulho de peido com o sovaco. Pra dar uma quebrada no clima ruim.  Era Toinho? Ou Cláudio? Ou Wellington? Sei lá. A gente ria e logo esquecia da velha. Era o mais comédia do grupo de moleques sujos.
Sinto falta deles. Não lembro o nome de quase nenhum. Mas sinto falta mesmo assim. Será que os reconheceria se visse ali sentados no bar de esquina tomando sua cerveja? Será que me reconheceriam? Acho difícil. Mudei demais. A cidade muda a gente. A dor muda a gente. A vida muda a gente. E eu sofri demais. Vivi demais. Mudei demais.
O que mais mudou?
O carro vai passando uma rua de terra batia. A rua do casarão da velha. Ainda no mesmo lugar. Virei quase que por superstição. Por extinto, sabe? Virei pro janelão da frente da casa. E na janela do alto, um vulto de cabelo desgrenhado com vestido amarelado. Todos os pêlos do meu corpo arrepiaram ao mesmo tempo. Engasguei com a própria saliva e pisquei. O vulto tinha sumido.
A figura da velha ainda tinha o mesmo efeito sobre mim.
Meu pai dizia que tem coisas que não mudam nunca. Bom, isso não mudou. 

sexta-feira, 20 de julho de 2012

2056


Eles vêm de noite. Levam nossos filhos. Acendem fogueiras. Esquartejam nossos animais. É sempre a mesma coisa. E deixam aqueles símbolos. Malditos símbolos. Pintam nas nossas portas. Com aquela tinta prateada. Cintilante. Horrorosa. É praticamente impossível de limpar. Muitos tentam. Mas é um trabalho inútil. A tinta continua ali. Os resíduos. Marcando a sua porta. Pra sempre. Dizem que é um mal agouro. Melhor não arriscar. Se eu acordar de manhã com uma marca dessas na minha porta , eu saio de casa. Pra nunca mais voltar. Se ao menos a vida não fosse tão difícil na cidade.
            Ah.... A cidade. Com todas aquelas coisas bonitas. Diferentes das daqui. E as ruínas. Tão belas. Pergunto-me quem teria construído tamanha beleza. Ouvi dizer uma vez que foram os antigos. Mas eu duvido. Como poderíamos nós, simples homens terem articulado tamanha façanha? Erguido tudo aquilo? Não. Eu pessoalmente duvido que tenham sido os antigos. Então quem foi? Não se sabe. Já estava lá quando nós chegamos. Quando os deuses nos deram o sopro da vida. E o mundo ainda era jovem. Quão jovem? Não se sabe. E não me importa muito saber.
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 Noite passada eles nos atacaram de surpresa. Malditos. Vieram pela mata. Atearam fogo em nossas casas. Estupraram nossos filhos. Esquartejaram nossos animais.  Temos a impressão de que estão crescendo em número. Estou com medo. Temo pelos meus filhos. Pelo meu marido. Ele é um homem bom. Não merece ter uma morte horrenda. Temo por mim também.
 Nesses dias escuros, não importa se você é homem ou mulher. Não faz diferença nenhuma. Somos todos iguais. Nós todos precisamos lutar. Lutar por nossa vida. Lutar por nossos filhos. Lutar por nosso deus.
            Malditos hereges. Com seu deus nojento e mentiroso. Suas bandeiras pagãs. Aquela estrela branca hedionda dançando ao vento. O jeito como pintam seus rostos. As cantorias que berram. Hereges malditos. Por que existem afinal? Não entendo como nosso deus possa permitir que estes malditos vivam. Respirando o mesmo ar que eu. No mesmo mundo em que eu. O Velho Mestre diz que eles são necessários. Pra testar a nossa fé. Devemos combatê-los. Livrar nosso mundo do mal. Se eles aumentarem em número, nós devemos aumentar em força. E lutar. Lutar sempre.
            Ando trôpega pela aldeia chamuscada. Mulheres chorando. Corpos largados no chão. E as cinzas. Ultimamente, as cinzas são o que nos resta.
Nossos sonhos. Em cinzas também. Não há nada a ser feito. Nada. Sento-me de noite, bem encolhida cadeira da salinha. Abro um dos livros de Santa Clarisse e deixo a imaginação me guiar por mundos menos tortuosos.  E escrevo. É meu refúgio. Meu lugar. Não há onde se esconder lá fora. Já aqui dentro...
                                                        - -
                       
           


            Noite passada meu marido se foi. Foram eles. É claro que foram eles. Vieram de dia desta vez. Não sei por que escrevo. Escrevo porque não sei. Mais. As crianças estão com fome de novo. Pedem pelo pai. Papai já vem. Não sei se terei forças pra continuar sozinha. Oh Deus. Por Zico e todos os santos. O que é que eu vou fazer? Minha tinta está acabando. Tenho medo quando acabar. Porque       quando        acabar. Não sei mais onde me esconder. Os homens estão ficando raros na tribo. As mulheres andam desoladas. AS que conseguiram escapar. Minha casa se foi. Corri com as crianças pela mata. Sem olhar pra trás. Meu marido gritou ao longe. Reconheci sua voz. Seu amor. Seu último grito. O tiro.
            Meu marido se foi. Meu mundo se foi.
                                                                  - -
           



Dor.
            Medo.
            Por favor.
            Alguém.
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            Eu não acredito mais em deus nenhum. Não existe Zico.
                                                     --

           
            Escondida numa cabana que achei no meio da mata. Medo de que eles escutem as batidas do meu coração.   Enforquei as crianças com as minhas próprias mãos. Amor. por amor.
Eles vão me encontrar aqui. Estão lá fora. São muitos. São maus. São o Mal. O Mal na terra. Enforquei as crianças porque quando nos acharem vão fazer coisa pior com elas. Eu tive que. Foi melhor assim. Quero me matar. Mas não consigo. Não consigo. Medo. Estão aqui dentro. Minha tinta ficando fraca. Não importa. Não importa mais. Estao     aqui. Aqui. Aflaa l...



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domingo, 3 de junho de 2012

Perfume - Parte 2


Na terceira noite já havia reposto meu estoque de pílulas. Perambulei pelo escritório feito um zumbi. Meu chefe me mandou pra casa mais cedo. Era um cara compreensivo. Cheguei em casa às três da tarde. Passei na farmácia no caminho, é claro. Antes de me largar na cama cheio de pílulas na mente, tive a idéia de checar o perfume. Abri o armário devagar. Minha mão relutava. Como se um peso invisível me impedisse.
Abri o armário pela primeira vez desde que ela se foi. Seus vestidos, suas blusas. Tudo exatamente como no dia em que ela bateu a porta na minha cara e foi trabalhar. O seu cheiro. Tudo estava lá. Como se ela tivesse ido passar as férias em Arraial e já voltava. Demorei-me na contemplação do armário. Cada roupa era uma lembrança. Aquela blusa, a da festa de final de ano do escritório. Aquele vestido preto, a dança no casamento do meu irmão. Aqueles pijaminhas verdes, o mesmo que ela usa desde que nos mudamos pra cá. O mesmo com que ela acordava todas a manhas com aquele sorriso doce e...
Abro a gaveta de joias. A um canto mais afastado, o vidrinho de perfume. Presente meu. Ela adorou. Encheu-me de beijos. Deu-me algo também. Um Rolex que costumava usar só pra sair à noite.  O vidrinho ali, parado na palma da minha mão. Abri. Respirei. As lembranças da noite anterior voltaram a assombrar meus pensamentos. Alguém atrás de mim? Chequei por cima do ombro. Por puro extinto. Levantei da cama e olhei em torno do quarto.
Não vou chamar pelo seu nome. Não vou. É loucura. É loucura e eu não estou louco. Olho atrás da cortina mesmo assim. Torno a sentar na cama, enterro a cara nas mãos. Será que um dia isso vai parar? O perfume largado ali do meu lado. Abro-o outra vez. Inspiro com força. Diana.
No vão da cama tem alguma coisa. Vi com o canto do olho. Sei que vi. Levanto de supetão e encosto na parede. Olhos arregalados. O coração batendo com força. Preciso ver. Preciso ver. Não quero. Ou quero? Preciso ver. Abaixo devagar. Vou engatinhando na direção do vão da cama. Tremendo que nem vara verde. Dá pra escutar alguma coisa vindo de lá. Tem ritmo. Parece até. Alguém respirando. Um ritmo nauseabundo, lento, viciado. Como gente dormindo cheio de catarro no nariz. Dá até pra contar as respirações. Deus. Tem alguma coisa. Ali embaixo da cama. Não quero ver. Mas tenho. Tenho que ver. Tenho.
Vou chegando devagar, levanto um pouco o lençol. Abaixando a cabeça devagar pra mergulhar na escuridão. A cabeça vai explorando o vazio do escuro. Se acostumando com o escuro. Bem devagar...
 Acho que me mijei quando o telefone tocou. Empurrei  o lençol com força e pulei pro lado. O telefone da cômoda sempre me sobressaltou. E sempre teve o dom de tocar nas piores horas. Como essa. Não queria atender de começo. Como o maldito não calava a boca,resolvi dar uma chance. Meu coração ainda batia com força quando peguei o gancho. Minha mão ainda tremia,de forma que precisei das duas pra atender a ligação. Era mamãe. Preocupada pra variar. Tentei acalma-la em vão. Minha voz entregava meu medo.
É. Acho que era medo que eu sentia. Minha voz tremia. As mãos também, por falar nisso. Mamãe mostrava sinais de preocupação desde o funeral. Desde então insistia pra que eu fosse passar uns dias com ela na antiga casa no Méier. Nem cogitei. Até agora.
É. Porque agora, eu sentia alguma coisa quando entrava na nossa casa. Falo “nossa” por puro costume. Não quero largar a ideia de que havia alguém morando ali comigo. Alguém que dividia tudo comigo. Na saúde e na doença. Na riqueza e na pobreza. Não posso me permitir abandonar a ideia de que havia ali outro ser humano. Alguém em que se confiar. Alguém em quem se apoiar. Alguém pra se amar. Diana.
Mas tenho medo agora. Essa sensação ruim quando entro na nossa casa. É inevitável olhar pros cantos escuros. Fico pensando se vou conseguir dormir no nosso quarto depois desta noite. Tenho medo agora. Medo. Mas medo de que? Exatamente de que? Será possível que posso me deparar com um cadáver decrépito andando perdido pelo corredor? O rosto de Diana, desfigurado pelo acidente. Os olhos saltados. Aqueles hematomas escuros cobrindo sua pele branca. Um pedaço de carne pendurado aqui e ali? Usando o seu vestido de casamento. A noiva cadáver. Um clássico!
Medo de que? Sério. Sempre fui racional. Nunca acreditei nessas bobagens. Tenho uma tia espírita que inclusive me ligou logo que soube do acidente. Ouvi a velha com suas baboseiras por uns quinze minutos depois deixei ela falando sozinha. Quer dizer. Não dá pra acreditar que exista alguma coisa depois do derradeiro dia da nossa morte. Dá? Nunca pensei realmente a respeito. Sempre correndo de lá pra cá. Entre um emprego e outro, um negócio da China, umas ações da empresa tal, uns contratos...
Mas e a morte?  Ela anda por aí. É tudo que sei. Perdi uma meia dúzia de amigos nos últimos anos. Uma meia dúzia de tias anciães que nunca tive muito contato. E foi só. Nunca realmente parei pra pensar na morte. Nunca cogitei a possibilidade de que ela me pudesse tirar tão cedo alguém tão próximo. A gente faz assim. Anda por aí, vivendo tudo que tem pra viver sem realmente pensar que a Caveira de Capuz Preto pode estar bem atrás de você. Ali no escritório. Na esquina da rua que você atravessa todos os dias.Tomando um café preto na padaria da esquina. Só esperando. A hora certa de te chamar. Sua hora chegou. Vambora!
Foi assim com Diana. Duvido que ela tenha pensado sobre isso tampouco. Vivia com pressa como eu. Trabalho, casa, trabalho, alguma festa, casa.E lá estava ela dirigindo a seus oitenta por hora no Alto da Boa Vista.E aí, como num passe de mágica: Vambora!
 Ela deve ter dito: “Não, mas hoje não posso! Acabei de brigar com meu marido, eu nem cheguei a dizer adeus, me leva amanhã!”. Mas não teve jeito. Era a hora e a Caveira não gosta de esperar não. Foi assim que naquela tarde quente ela levou Diana embora de mim. Pra todo sempre, numa curva no meio da serra. Uma curva cumprida, escorregadia que nunca chegou a terminar.
Nem ouvi o que mamãe dizia ao telefone. O mimimi de sempre. Chamando pra casa do Méier de novo. A velha casa onde fui criado. Com seu quintal cheio de flores, sua varanda com aqueles azulejos de mil novecentos e zero e aquelas cortinas cheias de poeira. Mamãe falando sem parar no meu ouvido o dia inteiro sobre os acontecimentos da Paróquia que ela costumava ir. E sobre o preço do pão. Ela sempre fala do maldito preço do pão. Não sei do que tenho mais medo. Dos fantasmas da minha casa ou ter que ir morar com mamãe. Recusei educadamente e fui tentar dormir.
Deixei a luz do abajur da cômoda aceso. Como um garotinho com medo do escuro. Reforcei minha dose diária de pílulas. Acrescentei uma pequena dose de whisky. Só pra garantir. Deixei a tevê ligada. Bem baixinho. Só pra ter aquela falsa ilusão de alegria no quarto. Estava entrando num ponto de estupor entre o mundo real e o dos sonhos. Foi quando tornei a ouvir a respiração. Bem distante. Meu coração dessa vez parecia ter congelado de medo. A respiração ia e vinha. Devagarzinho. Se a televisão estivesse um pouquinho mais alta seria impossível perceber aquele som vindo debaixo da cama onde eu deitava agora. Meus olhos arregalados no escuro não conseguiam se desprender do teto.
Saltei da cama de forma a ficar o mais longe possível do vão da cama. Como se temesse que mãos de esqueleto pudessem me puxar pelos calcanhares. Sai correndo do quarto acendendo todas as luzes da casa. Peguei o telefone da casa e disquei tremendo. Mamãe demorou pra atender com sua voz sonolenta porém feliz. Estava indo pro Méier agora mesmo. E dali direto para o Pinel, quem sabe?
De repente, mamãe não parecia mais tão assustadora assim. Enquanto saía de casa depois de jogar uma meia dúzia de mudas de roupa numa mochila, tive a certeza de que um vulto passara correndo no quarto escuro no fim do corredor. Saí sem nem apagar as luzes. Fechava a porta da sala e dei uma ultima olhada na nossa casa.
Antes de fechar a porta de vez, ainda pude sentir um leve cheiro do perfume.
                                   
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quinta-feira, 17 de maio de 2012

Déjà vu


_Que foi?
Sem resposta.
_Que foi?
Parado ali que nem estátua. Ainda sem resposta. Olhar perdido. Fixo no chão.
_ Você quer falar comigo, porra?
A grosseria trouxe-o de volta pro mundo. O de agora. O de ontem já foi.
_Eu já morri aqui.
Simples assim. Direto. Sem rodeios. Pra quê? Ela estanca. Fica pálida, boca aberta.
_Quê?
Como se explica uma coisa assim? Não dá. As pessoas pensam que se conhecem. Pensam que sabe tudo sobre as outras. Conhecem, namoram, fodem, casam. Mas quem realmente se conhece? Quem realmente sabe de cada canto escuro ali na profundeza da alma do outro? Cada estante empoeirada naquele cantinho mais obscuro da consciência? Ela encosta no ombro dele. Olhos nos olhos caídos.
_Fernando. Você tá me assustando. Quer me explicar o que tá acontecendo?
O silêncio só piora tudo. Ela é daquele tipo que fica mais grossa quando fica assustada. Dá pra culpá-la? Dá. Dá sim.
_Porra Fernando. A gente tá na nossa lua de mel, caralho. Dá pra me explicar porque você tá assim desde que a gente chegou?
Ele natural. Meio pálido. De nascença. Mas hoje um pouco mais. Olha pra ela. Torna pro chão. Ela ainda divisa um ensaio de lágrima. Ele nem aí. Curtindo essa viagem horripilante. Incrível e sinistra. Triste e saudosa. Isso aí é antítese.
_Eu já morri aqui. Bem nessa rua.
Ela desiste de vez.
_Vou voltar pro hotel.
É nessa hora que ele costuma correr pra ela. Puxar pelo braço. Abraçar e implorar por perdão. Encher ela de beijo. Falar que tava errado. Tava nada. Mas fala assim mesmo. Ela faz doce. Depois perdoa. Abraça também. Deixa beijar. Aí é sexo, perdão e tudo bem. Certo?
Ela já tinha dado lá seus trinta passos. E nada dele vir atrás. Isso não é normal. Então vida de casado é assim? Eles tinham saído do altar há o quê? Vinte e quatro horas? Da festa direto pra lua de mel. Roma. Tinha sido idéia dela. Como sempre. E agora isso. Se soubesse que ele ia surtar desde que pôs os pés na terra do Papa, teria ido pro Caribe como ele sugeriu.
Será que era de propósito? Não. Ele nunca foi disso. Não era de brincadeira. Não era de vingancinha tampouco. Então era o quê? O que era isso tudo? Quem era ele? E por falar nisso. Quem era ela?
Ela volta correndo. Sacode-o com força. Grita qualquer coisa. Uma meia dúzia de italianos pára e olha. Apontam pra ela. Não tá nem aí. E ele? Só encara ela. Os olhos pedidos dentro de si. A lágrima teimosa ainda na bochecha. A meio caminho da boca.
_Fernando, eu...

Eu nada. Fernando escorrega nos braços dela. Uma careta bagunçando as feições. A mão no peito. Ela mirrada como era não aguenta o peso do gordão. Os dois caem na relva. A multidão acode. Ambulância. Ela não fala nada em italiano.Ambulância! Acho que é tarde demais. Ela em choque não diz palavra. Só olha pra ele. Mãos na boca. Eu amo você. As pessoas em volta. Uns dois tirando foto com o celular. Já era. Tarde demais. Os olhos dele não dizem mais nada. A lágrima ainda está lá. Perdida na papada.
O que dizem os olhos sem luz? Ah sim. Que eu já morri aqui. Uma vez. De novo agora.

Será que um raio pode cair no mesmo lugar mais de uma vez? Pelo visto sim. Ou talvez a vida (e a morte) não seja um evento assim tão a toa como um raio que cai. Talvez alguma coisa a mais junte todos estes eventos, estes caminhos doidos tortuosos dolorosos que a gente apelida carinhosamente de vida. Talvez. Vai saber. Pergunte ao Fernando.


quarta-feira, 2 de maio de 2012

Perfume - Parte 1

Noite passada senti seu perfume de novo. Acordo num pulo, acendo a luz do abajur. Respiração descontrolada. O coração a mil. Pensamentos sem freio. Gritos silenciosos ecoam na minha cabeça. Suspiro seu nome. Diana. Olho o quarto. Procuro em todo canto. Uma esperança delirante de que possa encontrá-la. Ali escondida debaixo da cama. Atrás da cortina. Quem sabe? Chamo de novo. Grito. Diana!
Não estou louco. Sei que seu perfume estava lá. Sei que. Deus. Sei que ela estava lá. Na cama comigo. Dormindo seu sono tranquilo. Recostando o corpo junto ao meu. Cambaleio pra fora do quarto. Acendo a luz do banheiro. A barba por fazer há dias. Olhos vermelhos cansados exaustos sem luz. Quanto tempo faz? Dez dias. Vinte dias. Trinta dias. Cem dias. Mil dias. Já nem sem mais. Parei de contar. Não podia mais contar. Estava acabando comigo. Lavo o rosto. Tento me acalmar. Tento me convencer. De que? De que ela estava lá? Ou não?
Podia ser só um resto de perfume na roupa de cama. Não podia? Mas por que a frequência? E por que sempre a mesma hora? Vinte três e vinte e três. Número forte. O número dela. Abro o armário. Suas roupas ainda estão lá. Se depender de mim vão ficar pra sempre. Abro uma das gavetas. Mãos trêmulas suadas. Lá está o frasco. Perfume francês. Eu mesmo comprei. Aniversário de casamento. Uns quatros anos atrás. Deus. Parece tanto tempo. Como se fossem memórias de outra vida. Tiro a tampa e respiro. Aquele cheiro doce molhado suave tranquilo. Como ela. Ela tinha o dom de me acalmar. Um abraço e tudo estava bem. Problemas no escritório, na família, na vida. Um abraço e tudo estava bem. Ah, Diana, Diana. Se pudesse me dar aquele último abraço.
Era uma manhã de verão. Dessas quentes, sufocantes que anunciam o natal na Leader Magazine. Eu estava morto. Não tinha tirado férias. De novo. Estávamos em crise. Ela dizia que eu trabalhava demais. Eu rebatia dizendo que precisava pagar a hipoteca da casa. O carro. A faculdade do meu sobrinho. Ela havia de entender. Brigamos feio aquela manhã. Ela fechou a porta com força antes de sair. Fui atrás. Mas desisti. Que se fosse. De noite, quando eu chegasse, pensaria em algo pra consertar tudo. Eu sempre penso. Só não pensei que de noite poderia ser tarde demais. Sai do escritório um pouco mais cedo. Comprei um buquê de lírios. Eram seus favoritos. Ela dizia que adorava o cheiro. Pra mim, flores cheiram todas iguais. Cheguei em casa. Ela não estava lá.
Eram oito e nada de Diana. Sento no sofá, abro uma cerveja. Espero o jantar que não vem. Ligo a tevê pra distaria a cabeça. Alguma novela imbecil da Globo. Cochilo de olhos abertos.
Eram nove e nada de Diana. Levanto do sofá. Dou voltas na casa. Fecho as janelas. Acho que vem chuva aí. Faço um sanduíche. Abro uma cerveja. Rolo na cama.
Eram dez e nada de Diana. Ligo o celular. Pro diabo. Caixa postal. Onde se meteu? Na casa da mãe? Na cama com outro? Na rua dando voltas com o carro? Voltando a fumar escondida de mim? Mais provável. O carro não estava lá. Ou ela não voltou do trabalho ainda. Ou voltou e saiu outra vez. Ou. Ou não volta mais. Mas que bobagem, é claro que não. Por que haveria de acontecer alguma coisa? Justo hoje? Que brigamos. Justo nesse momento de tensão do nosso matrimônio de mais de dez anos? Não. Isso é coisa de filme. Não acontece na vida real. Não, não senhor. Não comigo. Não com a minha Diana. Não.
O telefone tocou. Esqueci de dizer. Eram onze. E nada de Diana. Era do hospital da cidade. Aquela merda caindo aos pedaços. Não. Não, não, não. Não lembro bem como sai de casa, peguei o carro e dirigi ate lá. Mas eram onze e quinze quando cheguei. E ainda nada de Diana. Não lembro bem como entrei no hospital. Lembro que passei por um monte de gente esperando numa fila quilométrica. Gente machucada, largada, morrendo. Lembro de um doutor careca. Que me falou alguma abobrinha médica que não conseguia entender. Lembro de subir umas escadas. De abrir uma porta. De estar em outro prédio. Não sei como cheguei lá. Lembro de rostos tensos. Lembro-me da irmã dela lá chorando. No chão. Me viu chegando e começou a chorar com mais força. Lembro de levantarem um lençol, abrirem um zíper ou coisa assim.Lembro do vermelho.
 Não lembro de mais nada.
Só que era meia noite. E nada. Absolutamente nada de Diana.
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                Quanto tempo nesse devaneio? Meia hora? Talvez mais. Já estive pior. Já me peguei desperdiçando longas tardes e noites remoendo cada momento. Revendo nossa fita de casamento. É, na época em que se gravava as coisas em fita cassete. Eu sou velho assim. Nossos amigos reunidos. Parentes. O bolo. Quanta babaquice. Nunca chorei em casamentos. Choro agora. Copiosamente. Sem parar. Até secar. Secar o que? A minha dor, minha alma. Sei lá.
                Levanto da cama. Dou voltas pelo quarto. Vou tentar pensar com calma. Nas últimas sete noites acordei com seu perfume. Receitaram umas pílulas para dormir. Estão funcionando maravilhosamente bem. Estavam, quero dizer. Até o perfume surgir do nada. Tomava as pílulas religiosamente às nove e meia, logo após o jantar. Deitava e mergulhava num estupor maravilhoso, um sono escuro cheio de sonhos dos quais nunca irei me lembrar. O doutor receitou duas pílulas por noite. Eu tomava cinco. Só por garantia. Era maravilhoso. Nada me acordava. Nem os vira-latas que adoravam azucrinar a vizinhança de madrugada. Nem os tiros eventuais da favela próxima. Nada.
Até que senti seu perfume.
Na primeira noite achei que fosse um sonho. Levantei a cabeça no escuro. Chamei por ela. Achei que vivia um desses sonhos em que você sabe que está sonhando. Queria aproveitar para revê-la. Porque talvez lá, nas profundezas da minha mente, ela estivesse viva e bem. Nada de sangue, hematoma, olhos pra fora, nada. Só ela, linda, perfeita, com seu perfume marvilhoso e seus beijos consoladores. Demorou uns minutos até entender que estava acordado. Que era real. O cheiro era real. Estava ali ainda. Pairando no ar. Lavando meu ser. Acendi as luzes. Não chamei seu nome. Seria loucura, certo?
Voltei a deitar. Chorava. Chorava no escuro. Inconsolável. Um pobre diabo largado a própria sorte. Abandonado para morrer sozinho. Velho, cansado e sozinho. Abracei o travesseiro. Beijei-o. Engoli mais três pílulas e mergulhei na escuridão de meus sonhos sem cor.
Na segunda noite lembro-me de meu sonho. Coisa rara. Andava pelo centro da cidade. Atravessei a Rua do Ouvidor e parei na frente de um sebo. Procurava um livro cujo nome não lembrava. Alguém veio me ajudar a procurar. Diana. Sorri. Ela não parecia lembrar de mim. Abracei-a. Ela, com aquele jeito sem jeito ficou lá, sem saber o que fazer. Sorriu de volta. E foi só. Naquele abraço apertado, quente, delicioso senti seu perfume. E acordei com ele pairando doce no ar.
Levantei de um salto. Estava lá. Não era resquício do sonho. Estava lá ainda. Meus pêlos do braço arrepiaram de imediato. Sentia calafrios. Seria medo? Não. Não sou homem de ter medo dessas coisas. Era algo mais. Algo no quarto. No ar. Além do perfume. Sua presença era quase tangível. Mas que presença? Ela não está lá. Está enterrada no Caju, há alguns palmos de terra. Foi só um sonho. Só um sonho imbecil do dia em que nos conhecemos. Olhei o relógio. Por acaso. Vinte três e vinte três. Procurei pelas pílulas, mas haviam acabado. Merda. Passei o resto da noite acordado, olhando pro teto ouvindo o barulho dos grilos e das criaturas noturnas à distância. Por mais de uma hora depois ainda podia captar o aroma de seu perfume no ar.
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sábado, 7 de janeiro de 2012

Olhos

Olhos vazios. Rasos olhos. Nada vêem. Nada vêm. Olham sem ver. Olhos sem olhar. Nada. Somente olhos. E o vazio.

As coisas passam. Pra lá e pra cá. Não faz a menor. São apenas olhos. Olhos que nada vêm.

Sendo olhos que são. Coisas ainda passam. Coisas passarão. Mas não adianta.

Estes olhos nada podem ver. Não mais. São maus. Olhos. Tristes e quietos olhos meus.