Decidi tirar uns dias de folga do
trabalho. Liguei e o chefe se limitou a desejar um "melhora logo e volta
que eu preciso de você". Não sei o que deu nesse cara. Talvez estivesse
com pena de mim. Não tenho certeza de quantas pílulas tomei escondido de mamãe.
Talvez
tenha exagerado na dose dessa vez. A sensação de estupor se apoderou de mim.
Como se estivesse num carrossel. Rodando devagar. Nos poucos momentos em que
mantinha os olhos abertos via tudo borrado. Como num sonho. Mamãe encheu minha
antiga cama de solteiro com travesseiros felpudos que eu adorava quando era criança.
Pelo cheiro de mofo diria que a velha não os lavou desde que saí de casa. Mas
tudo bem. Pelo menos teve o bom senso de abrir todas as janelas da casa pra
renovar o ar.Era bom ter alguém por perto de novo. Cuidando de mim. Se
preocupando. Fazendo meu almoço.
Pela
primeira vez em meses consegui não pensar no meu luto. Consegui me entregar àquele
sono induzido. Sem sonhos. Pelo que me lembro. Dizem que a gente sonha toda
noite. Mas só lembra de vez em quando. Talvez isso explique porque sempre
acordo com a sensação de ter chorado por horas a fio. Talvez eu continue
sonhando com a minha angústia. Mas pelo menos meu consciente não está mais
prestando atenção.
Mamãe
fica fora boa parte do dia. Mas aparece religiosamente na hora das refeições
pra me obrigar a comer alguma coisa. Você esta um esqueleto. Ela insiste. E me
empurra alguma gororoba que inventou de preparar na cozinha. Fica ali divagando
sobre as eleições, as últimas intrigas da Paróquia e o preço do pão. Como
sempre. Eu faço de conta que escuto olhando de relance pra alguma novela
reprisada na tevê.
Pendurada
na parede do corredor, uma velha foto de papai. Sempre fardado. Servira ao Exército
e me batia na bunda com uma vara de pescar algumas vezes por semana. Algumas
vezes com motivo. Mas na maioria das vezes não. Morrera jovem no aflorar de
seus quarenta anos. Minha idade hoje. Cirrose. Nunca senti sua falta.
Por
causa dele jurei que nunca colocaria uma gota de álcool na boca quando
crescesse. Quebrei a promessa aos dezenove anos. O motivo? Diana. Já era
apaixonado por ela desde que ela se mudou pro Méier, mas na época ela decidira
namorar um idiota lá do bairro. Quando eu soube, acabei sozinho com duas
garrafas de cerveja. Veja só. Vomitei tanto que mamãe pensou que fosse morrer.
Quando Diana soube, desmanchou o namoro com o idiota e veio me procurar. Nunca
mais nos separamos.
Meu
estupor não me impedia de tomar mais pílulas. Os eventos da noite anterior
haviam sido quase apagados de minha mente. Mas alguma parte do fundo da minha
alma me lembrava de tomar mais pílulas. Pra ter certeza absoluta de que não
sentiria o perfume novamente. Foi neste estado que passei pelos dois primeiros
dias. Só era interrompido pelo frio que entrava pelas janelas abertas a noite e
por mamãe que resolvera entrar no quarto a cada cinco minutos na segunda tarde
de minha estadia.
Não
chegava a vê-la de fato. De olhos fechados, ouvia seus passos pesados no quarto
de um lado para o outro. Uma vez ou talvez duas, pusera a mão em minha testa e
afagara meus cabelos molhados de suor. A mão estava tão gelada que eu abria acordava
sobressaltado. Mas quando abria meus olhos, ela já havia ido embora e só me
deparava com a velha foto de papai no corredor. As pílulas estavam mesmo me
deixando lento. Mesmo assim, nunca esquecia de tomá-las. Especialmente à noite.
Especialmente quando o velho relógio cuco da sala marcava vinte e três horas.
Como se receasse sentir o perfume. Eu precisava não sentir o perfume.
E
não o senti. Eu acho. Assim como o fato de não nos lembrarmos de nossos sonhos não
indicar que não tenhamos sonhamos… Talvez o fato de não me lembrar de ter
sentido o cheiro não queira dizer que não o tivesse sentido de fato...
Naquelas
três noites que passei na casa de mamãe não me lembro de ter sentido cheiro
algum. Só o de mofo e de feijão queimado. Na terceira noite, antes de me deitar
pra dormir, perguntei o porquê do seu rosto tão preocupado. Afinal de contas,
eu já me sentia bem melhor. Até pensava em trabalhar no dia seguinte. A velha
me acompanhava de um lado pro outro no quarto. Os olhos fundos de olheiras.
Quase arregalados. Era uma velha forte. Firme no andar. Firme no falar. Apesar
de seu estado de constante preocupação, nunca demonstrava sinais de abatimento
como os que mostrava essa manhã.
Ela
não me respondeu. Insisti. Ainda sem dizer nada, a velha passou os olhos pelas
janelas e portas todas escancarados. Foi a primeira vez que percebi que estava
tudo aberto, apesar do dia friorento de julho.
_É
pra ver se o cheiro vai embora.
_Qual
cheiro mãe?
_Esse
cheiro de perfume. - Foi sua resposta.
Os
pêlos da minha nuca arrepiaram. Nunca falei sobre o perfume com a velha. Olhei
sobressaltado para os lados como procurando o cadáver perfumado de Diana. Toda sensação
de descanso dos últimos três dias tinha ido embora de repente. Eram nove e
quarenta da noite.
Mamãe me olha ainda mais preocupada. Tenta
balbuciar alguma coisa.
_Está
acontecendo com você também, não está?
_O
quê mulher?
Lentamente
ela se volta pra foto de papai no corredor.
_Acontecendo
o que? – repeti.
_Depois
que ele se foi... Aconteceu comigo também.
_O
que? - Eu grito.
_Anos
depois de ele morrer... -A velha se volta pra mim sentando lentamente na cama.
Uma cara de desespero que eu nunca vi.
_Eu
ainda sentia o cheiro da cachaça favorita dele toda a noite... - respondeu com
os olhos vidrados na fotografia.
Caio
sentado na cama junto à velha. Minhas pernas não têm mais forças. Meus olhos
agora colados no retrato da parede também. Sem me voltar pergunto a ela com a
voz fraca:
_Por
quanto tempo você sentiu o cheiro?
Lentamente,
ela se volta pra mim. E num sussurro conclui:
_Filho...
Eu nunca deixei de sentir.
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