domingo, 16 de março de 2014

Perfume - Parte Três

          Decidi tirar uns dias de folga do trabalho. Liguei e o chefe se limitou a desejar um "melhora logo e volta que eu preciso de você". Não sei o que deu nesse cara. Talvez estivesse com pena de mim. Não tenho certeza de quantas pílulas tomei escondido de mamãe.
          Talvez tenha exagerado na dose dessa vez. A sensação de estupor se apoderou de mim. Como se estivesse num carrossel. Rodando devagar. Nos poucos momentos em que mantinha os olhos abertos via tudo borrado. Como num sonho. Mamãe encheu minha antiga cama de solteiro com travesseiros felpudos que eu adorava quando era criança. Pelo cheiro de mofo diria que a velha não os lavou desde que saí de casa. Mas tudo bem. Pelo menos teve o bom senso de abrir todas as janelas da casa pra renovar o ar.Era bom ter alguém por perto de novo. Cuidando de mim. Se preocupando. Fazendo meu almoço.
          Pela primeira vez em meses consegui não pensar no meu luto. Consegui me entregar àquele sono induzido. Sem sonhos. Pelo que me lembro. Dizem que a gente sonha toda noite. Mas só lembra de vez em quando. Talvez isso explique porque sempre acordo com a sensação de ter chorado por horas a fio. Talvez eu continue sonhando com a minha angústia. Mas pelo menos meu consciente não está mais prestando atenção.
          Mamãe fica fora boa parte do dia. Mas aparece religiosamente na hora das refeições pra me obrigar a comer alguma coisa. Você esta um esqueleto. Ela insiste. E me empurra alguma gororoba que inventou de preparar na cozinha. Fica ali divagando sobre as eleições, as últimas intrigas da Paróquia e o preço do pão. Como sempre. Eu faço de conta que escuto olhando de relance pra alguma novela reprisada na tevê.
          Pendurada na parede do corredor, uma velha foto de papai. Sempre fardado. Servira ao Exército e me batia na bunda com uma vara de pescar algumas vezes por semana. Algumas vezes com motivo. Mas na maioria das vezes não. Morrera jovem no aflorar de seus quarenta anos. Minha idade hoje. Cirrose. Nunca senti sua falta.
          Por causa dele jurei que nunca colocaria uma gota de álcool na boca quando crescesse. Quebrei a promessa aos dezenove anos. O motivo? Diana. Já era apaixonado por ela desde que ela se mudou pro Méier, mas na época ela decidira namorar um idiota lá do bairro. Quando eu soube, acabei sozinho com duas garrafas de cerveja. Veja só. Vomitei tanto que mamãe pensou que fosse morrer. Quando Diana soube, desmanchou o namoro com o idiota e veio me procurar. Nunca mais nos separamos.
          Meu estupor não me impedia de tomar mais pílulas. Os eventos da noite anterior haviam sido quase apagados de minha mente. Mas alguma parte do fundo da minha alma me lembrava de tomar mais pílulas. Pra ter certeza absoluta de que não sentiria o perfume novamente. Foi neste estado que passei pelos dois primeiros dias. Só era interrompido pelo frio que entrava pelas janelas abertas a noite e por mamãe que resolvera entrar no quarto a cada cinco minutos na segunda tarde de minha estadia.
          Não chegava a vê-la de fato. De olhos fechados, ouvia seus passos pesados no quarto de um lado para o outro. Uma vez ou talvez duas, pusera a mão em minha testa e afagara meus cabelos molhados de suor. A mão estava tão gelada que eu abria acordava sobressaltado. Mas quando abria meus olhos, ela já havia ido embora e só me deparava com a velha foto de papai no corredor. As pílulas estavam mesmo me deixando lento. Mesmo assim, nunca esquecia de tomá-las. Especialmente à noite. Especialmente quando o velho relógio cuco da sala marcava vinte e três horas. Como se receasse sentir o perfume. Eu precisava não sentir o perfume.
          E não o senti. Eu acho. Assim como o fato de não nos lembrarmos de nossos sonhos não indicar que não tenhamos sonhamos… Talvez o fato de não me lembrar de ter sentido o cheiro não queira dizer que não o tivesse sentido de fato...
          Naquelas três noites que passei na casa de mamãe não me lembro de ter sentido cheiro algum. Só o de mofo e de feijão queimado. Na terceira noite, antes de me deitar pra dormir, perguntei o porquê do seu rosto tão preocupado. Afinal de contas, eu já me sentia bem melhor. Até pensava em trabalhar no dia seguinte. A velha me acompanhava de um lado pro outro no quarto. Os olhos fundos de olheiras. Quase arregalados. Era uma velha forte. Firme no andar. Firme no falar. Apesar de seu estado de constante preocupação, nunca demonstrava sinais de abatimento como os que mostrava essa manhã.
          Ela não me respondeu. Insisti. Ainda sem dizer nada, a velha passou os olhos pelas janelas e portas todas escancarados. Foi a primeira vez que percebi que estava tudo aberto, apesar do dia friorento de julho.
          _É pra ver se o cheiro vai embora.
          _Qual cheiro mãe?
          _Esse cheiro de perfume. - Foi sua resposta.
          Os pêlos da minha nuca arrepiaram. Nunca falei sobre o perfume com a velha. Olhei sobressaltado para os lados como procurando o cadáver perfumado de Diana. Toda sensação de descanso dos últimos três dias tinha ido embora de repente. Eram nove e quarenta da noite.
           Mamãe me olha ainda mais preocupada. Tenta balbuciar alguma coisa.
          _Está acontecendo com você também, não está?
          _O quê mulher?
          Lentamente ela se volta pra foto de papai no corredor.
          _Acontecendo o que? – repeti.
          _Depois que ele se foi... Aconteceu comigo também.
          _O que? - Eu grito.
          _Anos depois de ele morrer... -A velha se volta pra mim sentando lentamente na cama. Uma cara de desespero que eu nunca vi.
          _Eu ainda sentia o cheiro da cachaça favorita dele toda a noite... - respondeu com os olhos vidrados na fotografia.
          Caio sentado na cama junto à velha. Minhas pernas não têm mais forças. Meus olhos agora colados no retrato da parede também. Sem me voltar pergunto a ela com a voz fraca:
          _Por quanto tempo você sentiu o cheiro?
          Lentamente, ela se volta pra mim. E num sussurro conclui:
          _Filho... Eu nunca deixei de sentir.


                                                                    --

                                                                                                                                                        


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