domingo, 11 de dezembro de 2011

A Corrida

Corre a menina o chão azul. Azul claro, não mais. Pontilhado de estrelas deslizam devagar. E rápido agora. Passam as estrelas sem fim a escuridão do chão. Sem fim. Todo infinito. A menina não perde o equilibrio. Não olha pra baixo. É mais fácil. Natural. Pronto. Factual. Corre sem pressa. Como querendo chegar ao destino que desconhece. Corre pelo ato de correr. Corre por ser menina. Que é.

Não sabe bem o que sente. Sabe alguma menina? Uma imensa energia acumulada. Que a impele ao exercício. E nada mais. Nem bem uma alegria. Tristeza tampouco. Então daonde virão as lágrimas que salgam seu rosto? Nem ela sabe. Tampouco importa. Só importa a corrida. Só importa o adiante. E nada além.

Caminha sobre areia agora. A brisa salgada do mar a salpicar suas faces coradas pelo sol. Ninguém à vista na longa enseada. Nem um ser sequer. Gaivota, siri, peixe, ser algum, só menina. Corre ainda. Mas perde um pouco do pique. É uma bela praia afinal. Poderia se demorar ali por mais alguns...séculos? Tão linda paisagem. Recorta-a somente o som de ondas suaves quebrantadas sobre a areia branca e macia.

Sorri a menina. Sorriso triste doce inocente. Como que escondendo algo. De quem, tu me perguntas. Se não há ninguém pra esconder. Não sei, te respondo. Talvez esconda a menina algo de sua própria alma, de seu próprio sorriso cansado. Talvez esconda a menina algo de si mesma. Talvez assim seja talvez.

Pára a menina por um instante. O fôlego explodindo as bochechas rosadas. Os cabelos dourados dançando o som da brisa. O vestidinho branco em seu próprio ritmo, sua própria dança. Os olhos azuis se perdem na imensidão das águas. O infinito oceano que a lugar algum conduz. Pensa a menina com seus olhos doces que deve continuar. Mas pra quê. E pra onde.

Sente medo. Impelida pela necessidade de seguir jornada despropositada, volta a menina à corrida. Os pezinhos salpicados pelas águas marcando a areia pegadas profundas e pequenas. Pegadas perdidas. O vento há de apagar. O vento sempre apaga.

E assim como surgiu, a praia se vai. Sem nem dizer adeus. A corrida segue. O fôlego da infância não sossega jamais. Uma estrada negra se apresenta à pequena agora. Ela pára por um minuto. Em sua cabecinha imagina se o ardor do asfalto não lhe queimará os pés. É uma longa estrada. Sabe-se lá quanto terá de andar até chegar ao fim da velha estrada. A urgência da corrida torna. Não há outra solução. Correr pelo asfalto gasto.

Os primeiros metros não sentiram. A afobação de chegar cegou-lhe os sentidos de dor. Mas a dor já vem. Ela sabe. Tão certo quanto o dia que chegará ao fim. A dor já vem. O sol imenso amarelo castigava a velha estrada fazendo o asfalto tinir. Suar até. Ao longe, a paisagem dançava sob escaldante castigo. A menina já não sorri. Nem que quisesse. Nem que pudesse. Os pezinhos ardidos contra o atrito da corrida. Torrando pretinhos, pretinhos. Como carvão. Lágrimas salpicam sua face. Com elas, o suor. Ainda sente o sal. Não mais vindo das ondas. Agora de si. Sal de si. Mar de si. Imensidão de si. E somente. Não há acostamento pra escapar. Nem um mato. Sombra. Coisa alguma. Somente ela e o asfalto negro. E a certeza de que deve continuar correndo. Ou queimará. A dor dos pezinhos chega-lhe à cabeça. À alma. Turva-lhe a vista, os sentidos, turva-lhe tudo. Olhos rasos molhados fechados agora. Somente o som da respiração e do chorinho miúdo que vai crescendo, crescendo dentro de si.

Vai cair. Sabe disso. Tenta resistir o quanto pode. Só um pouco mais. Um metro mais. Um milímetro. Caiu. Espera o ardor do asfalto consumir-lhe os ossos. A pele se abrir e derreter colada a negra.

Mas não. Os pezinhos suspensos no ar. Alguém aguenta o seu pesinho. Carrega seu fardo. Abraço apertado. Enxuga-lhe lágrimas, tristeza, medo, tudo que machuca e apavora. Abre os olhos a pequena. Sorriso bonito, olhos claros, pele castigada pelo sol do sertão. Chapéu de palha, moço simples. Simples e belo. Simples e belo e salvador. Sim. Porque senão por ele, a queda ceifaria sua vida. Caminha depressa. Menina no colo embalada. Ele põe-se a cantar. Canção conhecida, já antes ouvida mas em sua voz a canção é maior. A melodia assim de seus lábios faz todo o sentido. Todos os sentidos. Que haveriam de ser. A menina recosta. Abraça apertado. Embalada pra sempre. Olhos Claros espreita seu esmorecer. O sol segue alto claro imponente. Castiga a caminhada. Devora a estrada. Devora tudo. Tudo não. Não devora Olhos Claros. Que segue valente, passo por passo. A estrada segue. Tem de seguir.

A menina acorda. Sozinha outra vez. Abre um olhinho. O outro depois. Espreguiça, olha em volta. Sozinha outra vez. Atrás de si velha estrada. Terminou afinal. Mas onde andará os seus Olhos Claros? Não seguirá com ela até o fim? Sabe que não. Queria com ele caminhar junto pra quando cansar, ser levada no embalo do colo de novo. Sabe que não. Sua vez já passou. Sua importância não. Até ali carregou, o fardo pequeno como fosse seu. Talvez fosse. Não importaria também de carregar o fardo dele quando preciso. E talvez carregue. Na caminhada dele e só dele.

Espreguiça, levanta. Trata correr. Muito chão ainda falta pra chegar ao destino. Destino nem sabe. Só sabe que tem. Só sabe que vai. E vai mesmo. O sol foi embora. Estrada não há. Só chão enlameado. Os pezinhos sujos cada vez mais sujos. Os olhinhos rodando pra ver o que há. Entender o que há. O cheiro ruim. O céu nublado, feio, agourento. Cheio de promessas ruins. Trovoadas aqui, acolá. Promessas ruins. É o que há. Cria correr sozinha. Já não estava. Ao longe os Botinas correndo de um lado pro outro. Sem parar. Correndo e gritando. É tudo o que fazem. Só fazem correr e gritar. Ela tenta correr em segredo. Não podem ver. Não podem. Ela sabe que virem está tudo acabado. A Corrida se finda. Eles querem que a Corrida finde logo. São ruins. Como o céu. Cheio de promessas ruins. Botinas sujos. Com suas palavras duras e o cheiro de gás. Colocam estrelas em esqueletos. Esqueletos que andam que caem que choram. Montes de ossos. Podem ossos chorar? Não sabe. É apenas menina. Não poderia saber. Se esgueira entre os montes. Pilhas, na verdade. São pilhas de esqueletos. Sepultados jamais. Largados assim, ao relento. Esquecidos no chão. Largados ao vento, ao escuro, a chuva fina que começa. Pilhas de esqueletos. Choram ainda. Não me esqueçam. Por favor não me esqueçam.

Chora a menina com vontade agora. Por entre as pilhas, grandes pilhas de ossos encontra alguém. Não lembra bem quem. Mas lembra que conhece. Conhece bem. Olhos azuis como os seus. Um esqueleto somente. Diferente contudo. Lembra quem é. Chora e olha a menina. E a menina olha de volta. Olhos nos olhos. Choro no choro. Mamãe, eu te amo. Não vou te deixar. Mas você tem de continuar. Não posso, não posso. Você tem. Você vai. Eu sempre vou te amar. Nunca se esqueça. Nunca se esqueça de mim. Agora se vá que a estrada segue e os Botinas já vêm. E não podem levar. Não podem te achar. Mas agora se vá. Não olhes pra trás. Pra trás jamais. Tschüss! Ich liebe dich! Agora se vá. Que os Botinas já vem.

Corre a menina o chão de lama. A manga marejada de lágrimas. As perninhas bambas. Podem seu pesinho carregar? Podem continuar a corrida? Devem. É tudo que sabe a pequena. E segue corrida. Olhando por entre as pilhas, os Botinas sujos com suas cruzes e seu gás. Botinas sujos. Por entre as pilhas corre a menina. E um deles a viu. Viu e gritou. Chamou os outros. O choro aperta. Não pode parar. Coração galopando. Deseja a mãe, Olhos Claros, alguém. Mas alguém não vem. Não dessa vez. Esconde embaixo de um carrão que ali perto estava. Carrão velho sujo de terra, preto. Os Botinas pertinho. Dá até pra sentir o cheiro nojento do gás. Dá até pra ver os olhos deles. Escuros que nem noite. Espreme o corpinho contra uma cerca ao lado. Escapa quietinha, quietinha. Logo agora que um Botina resolve olhar embaixo do carro preto. Mas não tem mais menina. Já corre de novo. Sem olhar pra trás. Assim ensinou mamãe. E corre.

Primeiro sem direção. Depois toma um ponto. E segue pra lá. O chão já vai limpo. Ordem afinal. No meio do caos. Uma rua bem velha. Já nem deve existir. Se é que já existiu algum dia. As casinhas coladas. Bem perto uma da outra. Como quem se apóia no amigo do lado. Pra não cair no fim de noite. Corre a menina. As árvores, os postes de luz, os carros antigos antigos, desses que nem se vê mais. Pessoas sorrindo, o dia vai lindo. Tudo está onde devia estar. Menos ela. Ela precisa continuar. Passinhos apressados já meio demorados só pra aproveitar um pouco mais a visão. Distribui tchauzinhos e sorrisos pros cavaleiros e damas da rua. Gente bonita. Vestem roupas de outrora. Vivem tempos que já passaram. Felizes como ela já fora um dia. Dias primeiros. Passando a rua. Sua velha bicicleta. Já meio enferrujada. Num canto largada. Assim meio esquecida. Esquecida vai ela também.

Chega à casa. Velha casa. Linda casa. Tantas lembranças que agora já vem. Ali que nasceu. Assim disse mamãe. Numa bela manhã de outono. Vieram presentes. Beijos e olhos. Olhos pra ver o mais novo ser que a Alemanha há de ter nesta linda manhã.

Pára a menina. Coração apertado. Sabe em segredo que a Corrida acabou. Olha pro lado. Olha pro outro e assim devagar caminha menina. Pra porta meio aberta. De certo esquecida. Da casa querida. Aurora da vida. Esquecer-te jamais. Pára a menina. Mais uma vez. Fecha os olhinhos. Pensa em tudo que a Corrida deixou pra trás. Mas leva com ela. Toda Corrida. Todo passo. Toda vida. Que viveu. Tudo que viu. Tudo que amou. Tudo mais.

Entra na casa. Dentro só luz. Olhinho apertado. Sorriso que brota. Lágrimas nunca mais.

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_ Será que ela sofreu?

_ Acho que não. Olha como está sorrindo. Morreu dormindo... É a figura mais maravilhosa que já vi neste hospital. Morreu em paz, tenho certeza.

Desligam-se os aparelhos. Ligações são feitas. É hora de desocupar o leito. E se preocupar com a papelada. Na cama branca, uma senhorinha de lindos olhos azuis ainda sorri.

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