terça-feira, 4 de outubro de 2011

O Sonho - Parte Final

Tudo que preciso é sacudir a cabeça. Assim bem rápido. Isso. Isso deve me acordar. Ou me beliscar, talvez. Funciona nos filmes. Olho pro alto. Não. O olho ainda está lá. Escancarado. Olhando pras pessoas, pros prédios. Pros pássaros voando no alto. Tento me esconder dele mais uma vez. Mas sei que não vai funcionar por muito tempo. Ele vai me achar. Vai olhar no fundo dos meus próprios olhos e ver dentro da minha alma. Corro agachado. Tentando me esconder atrás daquela árvore. Como se fosse adiantar de alguma coisa. Ele vai me achar. Vai me achar. O ronco continua. Ensurdecedor. A rua chega a balançar com o seu estrondo. Alto. Alto. Não posso mais ficar aqui. Levanto-me e dou de cara com a pupila monstruosa me fitando. Ele me achou. Está falando comigo agora. Acorda. Acorda. São oito horas. É hora de acordar. É hora de acordar.
O despertador falante do celular. Deve ser a invenção mais irritante da história da humanidade. Mas é infalível. Começa com um chiado irritante. Porque sempre esqueço o maldito celular no modo silencioso. Ele começa a vibrar sob a cômoda, fazendo um barulho que parece um ronco. Depois de insistir nisso por uns segundos, uma voz robótica enjoada começa a falar. É hora de acordar. É hora de acordar. Levanto afinal. Aperto qualquer botão pra fazer o maldito calar a boca. Levanto devagar e sento na cama. Não lembro o que andei sonhando. Mas me sinto mais cansado do que quando fui deitar. Tenho tido essa sensação com freqüência ultimamente. Maldito vinho. Crio forças pra levantar e começar mais um dia sozinho. Procuro o chinelo. Depois o outro. Levanto. Vou andando pra cozinha preparar meu café sozinho. Mas espera. A arma. Vou checar se ainda está na gaveta da cômoda. Não sei bem por que. Ninguém mora comigo pra poder ficar mexendo nas minhas coisas. A arma tem que estar lá, ora. Fico ali parado. Na dúvida se volto ou não volto pra checar. Melhor deixar pra lá. Que bobagem. Vou pra cozinha. Requento o café de ontem à noite. Ligo a tevê pra ver o que há. Mas sei lá. Não sinto vontade de tevê essa manha. O sol está lindo lá fora. Acho que vou sair pra dar uma caminhada. E saio assim de repente. Sem pensar muito a respeito. De pijamas mesmo. Abro a porta e dou de cara com o campo. Bem ao lado, um enorme tobogã com crianças brincando felizes. Molhando tudo em volta. Os carros passam por perto, quase atropelando as pessoas no gramado. Não estão nem aí. O prédio daonde sai é uma fábrica. De móveis. Igual a que papai trabalhava. Um palhaço é o porteiro. Ele ri. Não sei se ri pra mim ou de mim. Não importa mesmo. Qual é a graça num maluco que sai pra dar uma volta pelado as oito da manha depois de uma noite mal dormida? Estou pelado. Droga. Jurava que tinha colocado o pijama pelo menos. As pessoas passam e olham pra mim assustadas. Ouço um comentário. Dois. Ele tem garras mamãe. Ele parece um bicho. Um lagarto. Que nojo. Sou eu. Um bicho homem lagarto, sei lá. Olhos amarelos olhando pro mundo. Enojando o mundo. Mundo de merda. O tobogã das crianças é alto mesmo. Vai até as nuvens. Os pequenos vão subindo as escadas intermináveis e desaparecem atrás de uma nuvem. Só pra depois aparecerem de novo. Escorregando. Escorregando. Pra cair de cabeça na água fria. Mas não tem mais água. Aquele ali está escorregando na direção de uma parede de concreto. Preciso ajudar o pequeno. Antes que. Antes que. Um grito. Eles não me deixam chegar perto do pequeno. Sai pra lá seu asqueroso. Sai. Eles estão me segurando. O pequeno escorregando. Feliz, feliz. Mais depressa agora. Até que. Sangue e ossos no concreto. Mais gritos. É culpa dele. Culpa dele. Dele. Desse monstro. Eles estão em volta de mim. Por que é minha culpa? Se fui eu quem tentou ir lá pra salvar a pele do pequeno. Agora não é mais nada. Ossos e sangue. E nada mais. Estão em volta de mim. Os carros em volta param pra avançar em minha direção também. Vai ser um massacre. Só o sol está do meu lado. Olhando pra mim com aquele Olho Solitário. Igual ao meu. Em forma de fenda como o meu. Animal como o meu. Olho no olho. As pancadas começam e não vão terminar. Vão? Seu animal. Seu animal. Acorda. Acorda. É hora de acordar.
É hora de acordar. Pulo da cama. Completamente ensopado por baixo dos pijamas. Tremo da cabeça aos pés. Meu santo Deus. O que esta havendo comigo. O quê. O quê? Não gritei. Não por falta de tentativa. Não pude. A garganta está fechada. Como se tivesse gritado por horas a fio, em terror. Mas isso não me impediu de pular pra longe da cama. Uma tentativa desesperada de fugir. Sei lá. Não fiz muito barulho. De maneira que não a acordei. Seus cabelos negros por baixo da coberta. Uma mão pendendo pro meu lado. Abraçando o próprio ombro. Virada pra parede. Não posso ver seu rosto. Não quero. Não posso. Não vou olhar pro rosto. Não vou esperar ela virar pra mim. Não, não senhor.
Abro a gaveta da cômoda. A arma está lá. Graças a Deus. Sem hesitar, destravo a arma. Ainda tremo da cabeça aos pés mas não dá pra errar dessa distância. Ela acorda quando sem querer deixo um pente do revólver cair no chão, produzindo um estampido metálico. Levanta devagarzinho. Sem se voltar pra mim ainda. Só vejo os cabelos negros e agora os braços levantando pro ar numa espreguiçada por baixo da coberta.
Tremo muito. Não posso errar. Não posso. Não posso deixar ela se virar pra mim e me encarar com aqueles olhos amarelos de cobra. Atiro três vezes. Na cabeça. O sangue salpica o quarto inteiro. Sangue e uma coisa pegajosa meio amarelada que se estampa na parede branca. Acho que ela ia dizer alguma coisa um pouco antes do primeiro tiro. Poderia ser bom dia, amor. Ou talvez outra coisa. É talvez fosse outra coisa. Nunca vou saber. É tarde demais agora. É tarde demais agora e eu nunca vou saber. Tremo ainda. Preciso acordar. Preciso sair daqui e... acordar. É tudo que eu preciso. Que esse pesadelo acabe. De vez. Estou cansado. Terrivelmente cansado. Sento na cama de novo. De costas pro sangue, pra janela, pra ela. Só quero que isso acabe. Que isso acabe de uma vez. Tremo e suo muito ainda. Olho de esguelha pro canto perto da porta. Deixei a arma descasando em cima da cômoda. Mas está perto, caso precise dela de novo. De quando em quando olho de esguelha pela janela. Na direção do sol branco que cobre a terra. Esperando. Esperando sempre. A hora de acordar. Ela tem que chegar alguma hora não é mesmo?
O barulho infernal de ronco desapareceu. Agora só ouço sirenes lá fora. E gente gritando. E alguém batendo na porta da cozinha. Com força. Acendo um cigarro. A mão ainda tremendo muito. Abra essa porta. Abra essa porta agora. Eles gritam. Não tem mais monstro verde nenhum rondando o quarto. E nem as ruas. Eles só rondam a minha cabeça agora. Trazendo idéias esquisitas. A porta da cozinha é escancarada com um estrondo. Olho pra arma em cima da cômoda. Passos apressados dentro da casa. Minha mão vai devagar até o encontro do gatilho. É hora de acordar.
É hora de acordar.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

o sonho

Acordo sobressaltado. Olho ao redor. Tudo no lugar. A velha cômoda de mamãe com suas gavetas de mogno. O abajur branco com seu velho botão que insistia em se soltar. O armário de madeira cheirando a velho. A porta logo a frente da cama que dava direto pra suíte da nossa cama de casal. Tudo no lugar. Não tem motivo pra se sobressaltar. Só um pesadelo. Desses que te deixam sem saber direito o que é real e o que é sonho. Olho pro lado. Ela dorme tranqüila fazendo aquele barulho de motor velho. O mesmo há mais de quinze anos. Está virada pra parede, de costas pra mim de forma que só poso divisar seus cabelos negros, um ombro sob a camisola branca e os lençóis ocultando suas formas. Já foram menos generosas. Olho pra ela. Dou um suspiro e me preparo pra voltar a dormir um sono mais tranqüilo. Está tudo no lugar, afinal. Mas espera. E aquele vulto logo lá? Num cantinho, bem perto da fresta da porta. Encolhido. Escondidinho esperando que ninguém notasse. Só esperando que eu voltasse ao meu sono pra poder se esgueirar devagarzinho até a cabeceira da cama. E me apertar com aquelas mãozinhas verdes cheias de garras. Sim porque ele tem garras. E é verde. Dá pra ver daqui daonde estou.

Levanto de supetão. Procuro tremulo a arma na gaveta da cômoda. Que deveria estar no lugar também. Mas não está. Só vejo um buraco escuro quando abro a gaveta. E uma outra mãozinha asquerosa sai de dentro dela.Me arranha com força. O sangue jorra com vontade. Eu grito. Meu amor acorda de seu sono de pedra. Finalmente. O barulho de motor pára um instante. Só pra depois voltar. Mais alto do que nunca. Ela se levanta. Ainda sem olhar pra mim. Só vejo os cabelos negros. Voando livres com o vento que entra pela janela escancarada agora. Ela se volta pra mim. Sua face distorcida revela uma besta que mais lembra uma tartaruga, com olhos amarelos de cobra. Ela escancara a bocarra pra mim. Volta a dormir, bem. Foi só um sonho ruim.

Acordo assustado. Não compreendo como consegui dormir encharcado como estava. OS cabelos pingando no rosto não deixam colocar meus óculos sem que deslizem pelas minhas faces. Olho pro lado com medo. Meu amor não está lá. Levantou mais cedo pra trabalhar. Como de costume. O bom de ser um escritor é que não preciso ter um horário regrado pra bater o ponto toda manhã. Gostaria de vê-la Quanta bobagem, não é verdade? Minha amada transformada num monstro horrendo. Monstros no meu quarto. Um sonho de garotinho. Talvez deva escrever sobre isso mais tarde. Melhor anotar pra não esquecer. Pronto. Me levanto pra um café. Ela sempre deixa uma garrafa cheia pra mim. Sabe que eu sou movido a café. Antes de sair do quarto uma leve desconfiança. Pode ser coisa da minha cabeça. Mas dá pra ver um leve arranhãozinho na quina do armário. Bem onde eu andei sonhando com a mãozinha verde e pegajosa e cheia de garras. Doideira. Volto pra perto da cabeceira. Abro a gaveta de cima. Só pra ter certeza. A arma não está lá.

Que diabo? Será que ela escondeu? Vendeu, sei lá? Ela jura de pé junto que vai fazer isso desde que comprei o Colt há mais de quatro anos. A vizinhança anda muito insegura ultimamente. Eu tenho uma boa noção de tiro. Sou policial civil aposentado. Não representa perigo algum, é pra nossa segurança, eu digo a ela. Mas ela me escuta? Nunca. Deve ter vendido. Desgraçada. Sem nem me avisar. Vamos ter uma briga boa quando ela voltar pra casa do trabalho de escritório no centro.

Sento pro café. Ligo a teve da cozinha descansado, só pra ver as noticias da manha. Monstros. Aparentemente, pequenas figurinhas verdes correm pela cidade destruindo tudo que encontram pela frente. Meu coração dispara. A arma. Se ao menos tivesse a maldita arma ainda. Poderia me proteger. Deles. Uma sombra passa pela janela. Meu coração congelado me faz parar onde estou. Quieto. Talvez eles não me vejam. Tarde demais. Uma delas anda em minha direção. Escorregando pela janela. Olhinhos de cobra fixos em mim. Abre um sorrisinho nojento liberando um hálito de morte que faz minha nuca gelar. Devagar agora. Devagar. Corro para a sala desesperado. Tarde demais ele avança em minha orelha. Mordendo com força e lambendo. Como se a língua se esticasse até chegar as profundezas do meu cérebro. Um beijo longo, molhado e...

O despertador vibra em cima da cabeceira. Está no mesmo lugar de sempre.Ela está ao meu lado. O cheiro fresco como a manhã. Beijando minha orelha com carinho. Esta um pouco atrasada, mas não se importa. Você esteve gemendo a noite toda, o que você andou sonhando, ela pergunta. Nada que possa me lembrar. Só algo com coisinhas verdes e a arma e...a arma. Abro a gaveta de repente. Ela se assusta. Já pedi pra se livrar dessa coisa. Por que é que você não me escuta? A arma está lá. Graças a Deus. Não sei por que. Só no caso de precisar. Vai que alguma coisa verde resolve aparecer na casa e...

Ela se levanta pra se arrumar. Vou atrás dela. Vou fazer o café hoje só pra fazê-la contente. Ligo o rádio. Está tocando nossa música favorita. Boto duas fatias de pão pra torrar. Começo a esquentar o leite. Enquanto ela toma banho resolvo ir lá fora pra olhar direito pro céu azul e o sol quente que anuncia o verão chegando pela nossa varanda. Mas. Onde esta o sol? No lugar dele um olho imenso de cobra me espia pelos céus. Tento me esconder dele mas não consigo. Saio desembestado pelas escadas do prédio. Ainda de pijamas. Não importa. Tenho que ver lá de baixo essa coisa bizarra que esta acontecendo no mundo. As pessoas na rua não parecem ter percebido anda de anormal. O velho porteiro acena com a cabeça quando passo. A velha do sete já voltou com a sacola cheia d e pães do mercado ao lado. Bom dia. O que tem de bom. Você não viu esse olho? Não tá vendo esse olho de cobra no céu? Qual o problema com vocês todos? Vocês não percebem que...que...

É um sonho. É lógico. É a única explicação. Ainda estou dormindo na minha cama. O despertador ainda nem tocou. Eu devo ter bebido demais na noite anterior. E comido também, por falar nisso. E ainda estou ali. Na minha cama. Ela deve estar dormindo do meu lado. Isso explica esse som de motor velho que não sai da minha cabeça; E começa a ficar mais e mais alto a medida que me dou conta de sua existência irritante.



CONTINUA...