domingo, 26 de maio de 2013

O Cheiro - Parte Um

Hoje outro moleque sumiu da rua.  Um mais magrinho. Ficava sempre lá jogado no canto ou correndo de um lado pro outro com o copo de Guaravita na mão. Falando sozinho. Gesticulava muito. Quase morria atropelado umas vinte vezes por dia. Era assim que ele vivia.
Eu o chamava de Cartolinha. Alguma coisa no jeito dele rir lembrava o velho poeta. Eu faço isso com frequência. Dou nome pra eles. Pode parecer loucura e talvez seja. Mas me dá uma sensação egoísta de bem estar, sabe? Se eu dou nome a eles, eles se tornam um pouco mais reais. Um pouco assim mais humanos, tá me entendendo? Se eu dou nome pra eles, eu garanto algum direito qualquer que eles não tenham tido nunca na vida. Um direito assim de...existir. De ser chamado e tratado que nem gente.
E hoje esse também sumiu da rua. Semana passada foram dois. O Acerola que lembrava o molequinho do “Cidade de Deus” e o Tiaguinho que era a cara do filho de dona Rosineide. Mês passado foram mais uns cinco. O Sem-Dente, o Barriga, O Encrenqueiro, a Ana Maria e a Capitu. Todos naquela fase doida que todo mundo passa entre o final da infância e o começo da adolescência. Onze, doze, quinze anos.Um inferno. Mesmo quando não te negam casa, comida nem roupa lavada.
Mesmo quando o craque não está lá presente carcomendo a sua alma. Inebriando a sua consciência. Transportando os seus medos mais profundos pra algum lugar escuro lá no fundo da tua mente.Fazendo você perder a trilha que te guiava pra você mesmo. Já estive lá. Não é o tipo de lugar que gostaria de voltar. Boa parte do tempo pelo menos. Esta noite, após as duras constatações as quais meus velhos olhos foram guiados, não sei mais. Gostaria de esquecer. De nunca ter visto. De não saber. De nunca ter dado nome a nenhum deles. De nunca ter me importado nem um pouco com coisíssima alguma.
De nunca ter sentido o Cheiro. O Cheiro Maldito que impregna minha janela nesse momento. Entra pelas fossas nasais e toca um sino estridente no meu cérebro, sacode cada refeição da semana que ainda insiste em permanecer nas reviravoltas das minhas tripas. O Cheiro que penetra nas minhas roupas estendidas no varal, que me acorda no meio da noite suando frio. Que atrai todo tipo de mosca esverdeada que eu nunca vi. O Cheiro. Queria nunca ter sentido. Mas depois que senti... Depois que entendi sua procedência, ele nunca mais me deixou. Como se a essência demoníaca tivesse ido morar bem embaixo do meu nariz.
De um dia pro outro, comecei a me dar conta da presença do Cheiro. No caminho pro trabalho. Na Igreja. Na mesa do bar. Em toda parte. Devagarzinho, o Cheiro passou a se tornar uma fascinação minha. Era mau agouro não senti-lo de manhã antes de sair de casa. Eu tinha um mal estar quando não o sentia por muito tempo. Pensava nele no almoço. Dormia com ele embalando meus sonhos escuros. Aos poucos o Cheiro foi se tornando parte do meu ser. Uma extensão da minha alma, sei lá. Era minha obsessão, meu segredo, minha maior preocupação. Meu amor e meu ódio. Fazia esquecer os meus filhos. Da minha ex-mulher. Daquela porrada de conta atrasada.

Só não me fazia esquecer os meninos da rua. De um jeito mórbido que só compreendo agora...o Cheiro também me fazia lembrar deles. O que me leva de volta ao começo do relato. Hoje outro moleque sumiu da rua. Cartolinha sumiu da rua. E ninguém viu. Só eu. E o Cheiro.