sexta-feira, 20 de julho de 2012

2056


Eles vêm de noite. Levam nossos filhos. Acendem fogueiras. Esquartejam nossos animais. É sempre a mesma coisa. E deixam aqueles símbolos. Malditos símbolos. Pintam nas nossas portas. Com aquela tinta prateada. Cintilante. Horrorosa. É praticamente impossível de limpar. Muitos tentam. Mas é um trabalho inútil. A tinta continua ali. Os resíduos. Marcando a sua porta. Pra sempre. Dizem que é um mal agouro. Melhor não arriscar. Se eu acordar de manhã com uma marca dessas na minha porta , eu saio de casa. Pra nunca mais voltar. Se ao menos a vida não fosse tão difícil na cidade.
            Ah.... A cidade. Com todas aquelas coisas bonitas. Diferentes das daqui. E as ruínas. Tão belas. Pergunto-me quem teria construído tamanha beleza. Ouvi dizer uma vez que foram os antigos. Mas eu duvido. Como poderíamos nós, simples homens terem articulado tamanha façanha? Erguido tudo aquilo? Não. Eu pessoalmente duvido que tenham sido os antigos. Então quem foi? Não se sabe. Já estava lá quando nós chegamos. Quando os deuses nos deram o sopro da vida. E o mundo ainda era jovem. Quão jovem? Não se sabe. E não me importa muito saber.
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 Noite passada eles nos atacaram de surpresa. Malditos. Vieram pela mata. Atearam fogo em nossas casas. Estupraram nossos filhos. Esquartejaram nossos animais.  Temos a impressão de que estão crescendo em número. Estou com medo. Temo pelos meus filhos. Pelo meu marido. Ele é um homem bom. Não merece ter uma morte horrenda. Temo por mim também.
 Nesses dias escuros, não importa se você é homem ou mulher. Não faz diferença nenhuma. Somos todos iguais. Nós todos precisamos lutar. Lutar por nossa vida. Lutar por nossos filhos. Lutar por nosso deus.
            Malditos hereges. Com seu deus nojento e mentiroso. Suas bandeiras pagãs. Aquela estrela branca hedionda dançando ao vento. O jeito como pintam seus rostos. As cantorias que berram. Hereges malditos. Por que existem afinal? Não entendo como nosso deus possa permitir que estes malditos vivam. Respirando o mesmo ar que eu. No mesmo mundo em que eu. O Velho Mestre diz que eles são necessários. Pra testar a nossa fé. Devemos combatê-los. Livrar nosso mundo do mal. Se eles aumentarem em número, nós devemos aumentar em força. E lutar. Lutar sempre.
            Ando trôpega pela aldeia chamuscada. Mulheres chorando. Corpos largados no chão. E as cinzas. Ultimamente, as cinzas são o que nos resta.
Nossos sonhos. Em cinzas também. Não há nada a ser feito. Nada. Sento-me de noite, bem encolhida cadeira da salinha. Abro um dos livros de Santa Clarisse e deixo a imaginação me guiar por mundos menos tortuosos.  E escrevo. É meu refúgio. Meu lugar. Não há onde se esconder lá fora. Já aqui dentro...
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            Noite passada meu marido se foi. Foram eles. É claro que foram eles. Vieram de dia desta vez. Não sei por que escrevo. Escrevo porque não sei. Mais. As crianças estão com fome de novo. Pedem pelo pai. Papai já vem. Não sei se terei forças pra continuar sozinha. Oh Deus. Por Zico e todos os santos. O que é que eu vou fazer? Minha tinta está acabando. Tenho medo quando acabar. Porque       quando        acabar. Não sei mais onde me esconder. Os homens estão ficando raros na tribo. As mulheres andam desoladas. AS que conseguiram escapar. Minha casa se foi. Corri com as crianças pela mata. Sem olhar pra trás. Meu marido gritou ao longe. Reconheci sua voz. Seu amor. Seu último grito. O tiro.
            Meu marido se foi. Meu mundo se foi.
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Dor.
            Medo.
            Por favor.
            Alguém.
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            Eu não acredito mais em deus nenhum. Não existe Zico.
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            Escondida numa cabana que achei no meio da mata. Medo de que eles escutem as batidas do meu coração.   Enforquei as crianças com as minhas próprias mãos. Amor. por amor.
Eles vão me encontrar aqui. Estão lá fora. São muitos. São maus. São o Mal. O Mal na terra. Enforquei as crianças porque quando nos acharem vão fazer coisa pior com elas. Eu tive que. Foi melhor assim. Quero me matar. Mas não consigo. Não consigo. Medo. Estão aqui dentro. Minha tinta ficando fraca. Não importa. Não importa mais. Estao     aqui. Aqui. Aflaa l...



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