Eles vêm de noite. Levam nossos filhos. Acendem fogueiras.
Esquartejam nossos animais. É sempre a mesma coisa. E deixam aqueles símbolos.
Malditos símbolos. Pintam nas nossas portas. Com aquela tinta prateada.
Cintilante. Horrorosa. É praticamente impossível de limpar. Muitos tentam. Mas
é um trabalho inútil. A tinta continua ali. Os resíduos. Marcando a sua porta.
Pra sempre. Dizem que é um mal agouro. Melhor não arriscar. Se eu acordar de
manhã com uma marca dessas na minha porta , eu saio de casa. Pra nunca mais
voltar. Se ao menos a vida não fosse tão difícil na cidade.
Ah.... A cidade. Com todas aquelas
coisas bonitas. Diferentes das daqui. E as ruínas. Tão belas. Pergunto-me quem
teria construído tamanha beleza. Ouvi dizer uma vez que foram os antigos. Mas
eu duvido. Como poderíamos nós, simples homens terem articulado tamanha
façanha? Erguido tudo aquilo? Não. Eu pessoalmente duvido que tenham sido os
antigos. Então quem foi? Não se sabe. Já estava lá quando nós chegamos. Quando
os deuses nos deram o sopro da vida. E o mundo ainda era jovem. Quão jovem? Não
se sabe. E não me importa muito saber.
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Noite passada eles nos atacaram de surpresa.
Malditos. Vieram pela mata. Atearam fogo em nossas casas. Estupraram nossos
filhos. Esquartejaram nossos animais. Temos a impressão de que estão crescendo em número. Estou com
medo. Temo pelos meus filhos. Pelo meu marido. Ele é um homem bom. Não merece
ter uma morte horrenda. Temo por mim também.
Nesses dias escuros, não importa se você é
homem ou mulher. Não faz diferença nenhuma. Somos todos iguais. Nós todos
precisamos lutar. Lutar por nossa vida. Lutar por nossos filhos. Lutar por
nosso deus.
Malditos hereges. Com seu deus nojento
e mentiroso. Suas bandeiras pagãs. Aquela estrela branca hedionda dançando ao
vento. O jeito como pintam seus rostos. As cantorias que berram. Hereges
malditos. Por que existem afinal? Não entendo como nosso deus possa permitir
que estes malditos vivam. Respirando o mesmo ar que eu. No mesmo mundo em que
eu. O Velho Mestre diz que eles são necessários. Pra testar a nossa fé. Devemos
combatê-los. Livrar nosso mundo do mal. Se eles aumentarem em número, nós
devemos aumentar em força. E
lutar. Lutar sempre.
Ando trôpega pela aldeia chamuscada.
Mulheres chorando. Corpos largados no chão. E as cinzas. Ultimamente, as cinzas
são o que nos resta.
Nossos sonhos. Em cinzas também. Não há nada a ser feito. Nada.
Sento-me de noite, bem encolhida cadeira da salinha. Abro um dos livros de Santa
Clarisse e deixo a imaginação me guiar por mundos menos tortuosos. E escrevo. É meu refúgio. Meu lugar. Não há
onde se esconder lá fora. Já aqui dentro...
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Noite
passada meu marido se foi. Foram eles. É claro que foram eles. Vieram de dia
desta vez. Não sei por que escrevo. Escrevo porque não sei. Mais. As crianças estão
com fome de novo. Pedem pelo pai. Papai já vem. Não sei se terei forças pra
continuar sozinha. Oh Deus. Por Zico e todos os santos. O que é que eu vou
fazer? Minha tinta está acabando. Tenho medo quando acabar. Porque quando acabar. Não sei mais onde me esconder.
Os homens estão ficando raros na tribo. As mulheres andam desoladas. AS que
conseguiram escapar. Minha casa se foi. Corri com as crianças pela mata. Sem olhar
pra trás. Meu marido gritou ao longe. Reconheci sua voz. Seu amor. Seu último
grito. O tiro.
Meu marido
se foi. Meu mundo se foi.
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Dor.
Medo.
Por favor.
Alguém.
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Eu não
acredito mais em deus nenhum. Não existe Zico.
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Escondida numa
cabana que achei no meio da mata. Medo de que eles escutem as batidas do meu
coração. Enforquei as crianças com as
minhas próprias mãos. Amor. por amor.
Eles vão me encontrar aqui. Estão
lá fora. São muitos. São maus. São o Mal. O Mal na terra. Enforquei as crianças
porque quando nos acharem vão fazer coisa pior com elas. Eu tive que. Foi
melhor assim. Quero me matar. Mas não consigo. Não consigo. Medo. Estão aqui
dentro. Minha tinta ficando fraca. Não importa. Não importa mais. Estao aqui. Aqui. Aflaa l...
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