quinta-feira, 17 de maio de 2012

Déjà vu


_Que foi?
Sem resposta.
_Que foi?
Parado ali que nem estátua. Ainda sem resposta. Olhar perdido. Fixo no chão.
_ Você quer falar comigo, porra?
A grosseria trouxe-o de volta pro mundo. O de agora. O de ontem já foi.
_Eu já morri aqui.
Simples assim. Direto. Sem rodeios. Pra quê? Ela estanca. Fica pálida, boca aberta.
_Quê?
Como se explica uma coisa assim? Não dá. As pessoas pensam que se conhecem. Pensam que sabe tudo sobre as outras. Conhecem, namoram, fodem, casam. Mas quem realmente se conhece? Quem realmente sabe de cada canto escuro ali na profundeza da alma do outro? Cada estante empoeirada naquele cantinho mais obscuro da consciência? Ela encosta no ombro dele. Olhos nos olhos caídos.
_Fernando. Você tá me assustando. Quer me explicar o que tá acontecendo?
O silêncio só piora tudo. Ela é daquele tipo que fica mais grossa quando fica assustada. Dá pra culpá-la? Dá. Dá sim.
_Porra Fernando. A gente tá na nossa lua de mel, caralho. Dá pra me explicar porque você tá assim desde que a gente chegou?
Ele natural. Meio pálido. De nascença. Mas hoje um pouco mais. Olha pra ela. Torna pro chão. Ela ainda divisa um ensaio de lágrima. Ele nem aí. Curtindo essa viagem horripilante. Incrível e sinistra. Triste e saudosa. Isso aí é antítese.
_Eu já morri aqui. Bem nessa rua.
Ela desiste de vez.
_Vou voltar pro hotel.
É nessa hora que ele costuma correr pra ela. Puxar pelo braço. Abraçar e implorar por perdão. Encher ela de beijo. Falar que tava errado. Tava nada. Mas fala assim mesmo. Ela faz doce. Depois perdoa. Abraça também. Deixa beijar. Aí é sexo, perdão e tudo bem. Certo?
Ela já tinha dado lá seus trinta passos. E nada dele vir atrás. Isso não é normal. Então vida de casado é assim? Eles tinham saído do altar há o quê? Vinte e quatro horas? Da festa direto pra lua de mel. Roma. Tinha sido idéia dela. Como sempre. E agora isso. Se soubesse que ele ia surtar desde que pôs os pés na terra do Papa, teria ido pro Caribe como ele sugeriu.
Será que era de propósito? Não. Ele nunca foi disso. Não era de brincadeira. Não era de vingancinha tampouco. Então era o quê? O que era isso tudo? Quem era ele? E por falar nisso. Quem era ela?
Ela volta correndo. Sacode-o com força. Grita qualquer coisa. Uma meia dúzia de italianos pára e olha. Apontam pra ela. Não tá nem aí. E ele? Só encara ela. Os olhos pedidos dentro de si. A lágrima teimosa ainda na bochecha. A meio caminho da boca.
_Fernando, eu...

Eu nada. Fernando escorrega nos braços dela. Uma careta bagunçando as feições. A mão no peito. Ela mirrada como era não aguenta o peso do gordão. Os dois caem na relva. A multidão acode. Ambulância. Ela não fala nada em italiano.Ambulância! Acho que é tarde demais. Ela em choque não diz palavra. Só olha pra ele. Mãos na boca. Eu amo você. As pessoas em volta. Uns dois tirando foto com o celular. Já era. Tarde demais. Os olhos dele não dizem mais nada. A lágrima ainda está lá. Perdida na papada.
O que dizem os olhos sem luz? Ah sim. Que eu já morri aqui. Uma vez. De novo agora.

Será que um raio pode cair no mesmo lugar mais de uma vez? Pelo visto sim. Ou talvez a vida (e a morte) não seja um evento assim tão a toa como um raio que cai. Talvez alguma coisa a mais junte todos estes eventos, estes caminhos doidos tortuosos dolorosos que a gente apelida carinhosamente de vida. Talvez. Vai saber. Pergunte ao Fernando.


quarta-feira, 2 de maio de 2012

Perfume - Parte 1

Noite passada senti seu perfume de novo. Acordo num pulo, acendo a luz do abajur. Respiração descontrolada. O coração a mil. Pensamentos sem freio. Gritos silenciosos ecoam na minha cabeça. Suspiro seu nome. Diana. Olho o quarto. Procuro em todo canto. Uma esperança delirante de que possa encontrá-la. Ali escondida debaixo da cama. Atrás da cortina. Quem sabe? Chamo de novo. Grito. Diana!
Não estou louco. Sei que seu perfume estava lá. Sei que. Deus. Sei que ela estava lá. Na cama comigo. Dormindo seu sono tranquilo. Recostando o corpo junto ao meu. Cambaleio pra fora do quarto. Acendo a luz do banheiro. A barba por fazer há dias. Olhos vermelhos cansados exaustos sem luz. Quanto tempo faz? Dez dias. Vinte dias. Trinta dias. Cem dias. Mil dias. Já nem sem mais. Parei de contar. Não podia mais contar. Estava acabando comigo. Lavo o rosto. Tento me acalmar. Tento me convencer. De que? De que ela estava lá? Ou não?
Podia ser só um resto de perfume na roupa de cama. Não podia? Mas por que a frequência? E por que sempre a mesma hora? Vinte três e vinte e três. Número forte. O número dela. Abro o armário. Suas roupas ainda estão lá. Se depender de mim vão ficar pra sempre. Abro uma das gavetas. Mãos trêmulas suadas. Lá está o frasco. Perfume francês. Eu mesmo comprei. Aniversário de casamento. Uns quatros anos atrás. Deus. Parece tanto tempo. Como se fossem memórias de outra vida. Tiro a tampa e respiro. Aquele cheiro doce molhado suave tranquilo. Como ela. Ela tinha o dom de me acalmar. Um abraço e tudo estava bem. Problemas no escritório, na família, na vida. Um abraço e tudo estava bem. Ah, Diana, Diana. Se pudesse me dar aquele último abraço.
Era uma manhã de verão. Dessas quentes, sufocantes que anunciam o natal na Leader Magazine. Eu estava morto. Não tinha tirado férias. De novo. Estávamos em crise. Ela dizia que eu trabalhava demais. Eu rebatia dizendo que precisava pagar a hipoteca da casa. O carro. A faculdade do meu sobrinho. Ela havia de entender. Brigamos feio aquela manhã. Ela fechou a porta com força antes de sair. Fui atrás. Mas desisti. Que se fosse. De noite, quando eu chegasse, pensaria em algo pra consertar tudo. Eu sempre penso. Só não pensei que de noite poderia ser tarde demais. Sai do escritório um pouco mais cedo. Comprei um buquê de lírios. Eram seus favoritos. Ela dizia que adorava o cheiro. Pra mim, flores cheiram todas iguais. Cheguei em casa. Ela não estava lá.
Eram oito e nada de Diana. Sento no sofá, abro uma cerveja. Espero o jantar que não vem. Ligo a tevê pra distaria a cabeça. Alguma novela imbecil da Globo. Cochilo de olhos abertos.
Eram nove e nada de Diana. Levanto do sofá. Dou voltas na casa. Fecho as janelas. Acho que vem chuva aí. Faço um sanduíche. Abro uma cerveja. Rolo na cama.
Eram dez e nada de Diana. Ligo o celular. Pro diabo. Caixa postal. Onde se meteu? Na casa da mãe? Na cama com outro? Na rua dando voltas com o carro? Voltando a fumar escondida de mim? Mais provável. O carro não estava lá. Ou ela não voltou do trabalho ainda. Ou voltou e saiu outra vez. Ou. Ou não volta mais. Mas que bobagem, é claro que não. Por que haveria de acontecer alguma coisa? Justo hoje? Que brigamos. Justo nesse momento de tensão do nosso matrimônio de mais de dez anos? Não. Isso é coisa de filme. Não acontece na vida real. Não, não senhor. Não comigo. Não com a minha Diana. Não.
O telefone tocou. Esqueci de dizer. Eram onze. E nada de Diana. Era do hospital da cidade. Aquela merda caindo aos pedaços. Não. Não, não, não. Não lembro bem como sai de casa, peguei o carro e dirigi ate lá. Mas eram onze e quinze quando cheguei. E ainda nada de Diana. Não lembro bem como entrei no hospital. Lembro que passei por um monte de gente esperando numa fila quilométrica. Gente machucada, largada, morrendo. Lembro de um doutor careca. Que me falou alguma abobrinha médica que não conseguia entender. Lembro de subir umas escadas. De abrir uma porta. De estar em outro prédio. Não sei como cheguei lá. Lembro de rostos tensos. Lembro-me da irmã dela lá chorando. No chão. Me viu chegando e começou a chorar com mais força. Lembro de levantarem um lençol, abrirem um zíper ou coisa assim.Lembro do vermelho.
 Não lembro de mais nada.
Só que era meia noite. E nada. Absolutamente nada de Diana.
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                Quanto tempo nesse devaneio? Meia hora? Talvez mais. Já estive pior. Já me peguei desperdiçando longas tardes e noites remoendo cada momento. Revendo nossa fita de casamento. É, na época em que se gravava as coisas em fita cassete. Eu sou velho assim. Nossos amigos reunidos. Parentes. O bolo. Quanta babaquice. Nunca chorei em casamentos. Choro agora. Copiosamente. Sem parar. Até secar. Secar o que? A minha dor, minha alma. Sei lá.
                Levanto da cama. Dou voltas pelo quarto. Vou tentar pensar com calma. Nas últimas sete noites acordei com seu perfume. Receitaram umas pílulas para dormir. Estão funcionando maravilhosamente bem. Estavam, quero dizer. Até o perfume surgir do nada. Tomava as pílulas religiosamente às nove e meia, logo após o jantar. Deitava e mergulhava num estupor maravilhoso, um sono escuro cheio de sonhos dos quais nunca irei me lembrar. O doutor receitou duas pílulas por noite. Eu tomava cinco. Só por garantia. Era maravilhoso. Nada me acordava. Nem os vira-latas que adoravam azucrinar a vizinhança de madrugada. Nem os tiros eventuais da favela próxima. Nada.
Até que senti seu perfume.
Na primeira noite achei que fosse um sonho. Levantei a cabeça no escuro. Chamei por ela. Achei que vivia um desses sonhos em que você sabe que está sonhando. Queria aproveitar para revê-la. Porque talvez lá, nas profundezas da minha mente, ela estivesse viva e bem. Nada de sangue, hematoma, olhos pra fora, nada. Só ela, linda, perfeita, com seu perfume marvilhoso e seus beijos consoladores. Demorou uns minutos até entender que estava acordado. Que era real. O cheiro era real. Estava ali ainda. Pairando no ar. Lavando meu ser. Acendi as luzes. Não chamei seu nome. Seria loucura, certo?
Voltei a deitar. Chorava. Chorava no escuro. Inconsolável. Um pobre diabo largado a própria sorte. Abandonado para morrer sozinho. Velho, cansado e sozinho. Abracei o travesseiro. Beijei-o. Engoli mais três pílulas e mergulhei na escuridão de meus sonhos sem cor.
Na segunda noite lembro-me de meu sonho. Coisa rara. Andava pelo centro da cidade. Atravessei a Rua do Ouvidor e parei na frente de um sebo. Procurava um livro cujo nome não lembrava. Alguém veio me ajudar a procurar. Diana. Sorri. Ela não parecia lembrar de mim. Abracei-a. Ela, com aquele jeito sem jeito ficou lá, sem saber o que fazer. Sorriu de volta. E foi só. Naquele abraço apertado, quente, delicioso senti seu perfume. E acordei com ele pairando doce no ar.
Levantei de um salto. Estava lá. Não era resquício do sonho. Estava lá ainda. Meus pêlos do braço arrepiaram de imediato. Sentia calafrios. Seria medo? Não. Não sou homem de ter medo dessas coisas. Era algo mais. Algo no quarto. No ar. Além do perfume. Sua presença era quase tangível. Mas que presença? Ela não está lá. Está enterrada no Caju, há alguns palmos de terra. Foi só um sonho. Só um sonho imbecil do dia em que nos conhecemos. Olhei o relógio. Por acaso. Vinte três e vinte três. Procurei pelas pílulas, mas haviam acabado. Merda. Passei o resto da noite acordado, olhando pro teto ouvindo o barulho dos grilos e das criaturas noturnas à distância. Por mais de uma hora depois ainda podia captar o aroma de seu perfume no ar.
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