sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Loucura - Parte Final

Só sei que num instante o garfo tava ali. Apontado pra minha direção e do Zé. No outro instante, o garfo tava lá. Encravado naquele lindo olho esverdeado dela. O direito. A louca era canhota.
Ela golpeava o próprio olho. Furava com o garfo. Com toda força. Jatinhos de sangue voavam pros lados. Um deles espirrou na minha mão. Ela arrancava o garfo. E depois tornava a investir outro golpe. Sem dó nenhuma. No mesmo olho. Quer dizer. Não sei se ainda tinha alguma coisa que pudesse ser chamada de olho ali. Mas ela arrancava o garfo e depois tornava a encravar com força. Com raiva. E depois arrancava de novo. E depois tornava a enfiar o garfo. Sem parar.
Eu não tinha reação. Não dava pra ter reação. Nem quando o jatinho vermelho escuro pousou na minha mão. Nem quando os pedaços de...sei lá. Gosma? Geléia? Sem cor nenhuma, parecendo vidro derretido respingaram um pouco na minha boca aberta. Não tinha reação, cara. Quer dizer, o que que você faz numa situação igual essa?
O incrível. Não, o impressionante é que nem depois disso tudo. Ninguém olhou. Ninguém parecia estar consciente do que tava acontecendo ali. Ou não se importava, sei lá. Mas aquilo tava acontecendo. Não tava? O Zé tava ali do lado. Quando eu tive um pouco de força pra olhar pro lado eu vi o homem branco como um fantasma olhando de volta pra mim. Um dos jatos de sangue tinha sido disparado na cara dele. Um respingo escorria devagar, perto da têmpora esquerda. Então, ele também tava vendo aquilo, certo? Não era só eu.
Ainda não sabia o que fazer. Não tinha idéia. Mas sabia o que eu não ia fazer. Não ia continuar ali, parado vendo aquela merda. A mulher continuava investindo garfadas dentro do buraco onde antes tinha um lindo olho verde. Pelo amor de Deus. Ela não ia parar mais? E os gritos? Deus. Os gritos. Não paravam também, não. O marido. O dinheiro. Se eu não tivesse dormido com aquele filha da puta. Ela não parecia nem se dar conta do que estava fazendo. Completamente surtada. E o garfo ia entortando. Entornando. Como se tivesse batendo contra uma superfície dura agora. E talvez tivesse. Talvez já tivesse chegado ao fundo. Isso explica aquele barulho agourento. Quando você arranha com a unha um parede de concreto.
Levantei de súbito. Puxei o Zé junto, fazendo o pobre diabo quase desabar da cadeira. Ele ia me agradecer depois. Ia dar o fora dali. Agora. Sair daquele lugar dos infernos e ligar pra alguém. Pra policia, os bombeiros, a defesa civil, pro demônio. Alguém que tomasse uma providência com aquela maluca. E não ia ser eu não.
Simbora Zé. Vamo saí daqui. Vamo não. Bora homem. Mas vamo não. Vamo é matar. Matar todo mundo.
Aquele homem baixo, tímido, meu companheiro de bar e puteiro. Não era ele. O olhar não era dele. A enorme faca que ele apanhara da mesa ao lado não era dele. O sorriso que brotou no canto da boca. Não era dele. O jeito como foi andando pro outro lado do restaurante. Na pontinha do pé. Parecendo um desenho animado ridículo, rindo e olhando pros lados. Pra ver se não tinha ninguém olhando. Ia assim, devagarzinho, na ponta do pé. Na direção de um garçom que anotava os pedidos da mesa mais próxima. Mas que diabos ia fazer? Zé. Que diabos ta fazendo ai? Gritei. Tentando competir com a loira maluca a minha direita. Zé. Zé, pára com isso agora Zé. Mais perto. Cada vez mais perto agora. Indo devagarzinho. Levanta a faca com as duas mãos. E o imbecil do garçom ali, anotando o pedido da mesa do casal. Um sorriso falso na cara. É o melhor vinho da casa, senhor. Pode estar certo disso. Pode estar certo que é o melhor. Zé. Zé, pára com essa merda. Meu marido. Eu odeio aquele filha da puta que não me dá a porra do meu sapato que eu mereço. Ele não pensa em mim. Eu odeio a minha vida, porra! Zé, pára com essa merda. Eu deveria ter ido na direção dele. Tentado arrancar a faca antes dele fazer aquela loucura. Mas não conseguia sair daonde eu tava. Eu tava com medo. Como quando fui assaltado por dois vagabundos ano passado. Como quando minha ex- mulher me pegou na cama com a minha enteada e mirou aquela arma na minha cabeça. Como quando papai me pegou tirando dez cruzados da carteira da vovó quando era garoto. Deus. Eu estava morto de medo. Zé. Pára Zé. Cuidado, cuidado seu imbecil!
Ele não viu o Zé. Não viu o Zé levantando a faca. Não viu os olhos arregalados. O sorriso insano. A boca abrindo, abrindo. Não viu nem a lâmina entrando no próprio crânio. Não viu nada. Um minuto ali em pé. Agachado anotando os pedidos. O melhor vinho da casa. No outro momento, de joelhos diante do casal na mesa. A cabeça enterrada no prato de risoto. A lâmina encravada fundo no crânio, daonde vazava sangue e miolos pela mesa.
O Zé se limitou a olhar pra mim e dar de ombros. O sorriso imbecil na cara. Nunca vi o filha da mãe sorrir daquele jeito. E sem aviso começa a saltitar pelo restaurante. Como um daqueles dançarinos de balé gays que a gente vê na tevê e muda de canal depressa. A loira continuava gritando ao meu lado. Já não dava a mínima pra ela.
E o casal. Que o garçom estivera atendendo. O melhor vinho da casa, senhor. Se limitava a olhar pro crânio aberto do homem. E continuavam a conversar animadamente. Ela pegou nas mãos dele. Com os berros da loira e a cantoria estridente que o Zé começou a bradar, não dava pra ouvir o que dizia. Mas deu pra ler os lábios. Eu sou bom em ler os lábios. Eu te amo. Nós vamos ficar juntos pra sempre. Um brinde. Removeu a faca do crânio tombado em cima de sua mesa. E começou a abri-lo, como um coco. A mulher sorria e batia palminhas, excitada. Deus. Deus do céu. Não.
O Zé continuava sua dança. Imitava borboletas, pássaros, parava de mesa em mesa. Despenteava o cabelo de um. Derrubava o prato de outro. As pessoas se limitavam a olhar pra ele com cara feia e depois afugentá-lo com uma aceno de mão. Como se fosse uma mosca chata de bar. As pessoas não notavam. A mulher sem olho. O homem morto. Morto. Caído em cima da mesa do casal. Morto ali. Por um louco que agora dançava e saltitava pelas mesas como um beija-flor. Eu odeio a minha vida. Eu odeio,odeio,odeio. A mulher começava a golpear o outro olho agora. Novos jatos de sangue na minha camisa. A música distante do restaurante dava um coro demoníaco a toda aquela cena. Uma dessas músicas clássicas de algum compositor famoso. Desses que você nunca sabe o nome, mas que todo mundo acha o máximo. Chopin, Bethoveen, sei lá quem. Ando pela cena como num sonho. Perdido. O celular parado na mão. Não sei mais discar um celular. Não me lembro. Ando passos de bêbado. Tentando me livrar da mulher que agora vaga cega de um lado pro outro, esbarrando nas mesas, nos garçons que continuavam a servir as mesas como se nada tivesse ocorrido.
O homem já tinha aberto o crânio do garçom morto completamente. Expunha o conteúdo da cabeça pra mulher que ainda ria e arregalava os olhos, dando gritinhos animados. Pegaram duas taças de vinho. Encheram cada um com um pouco daquele conteúdo cinzento, disforme. Entrelaçaram os braços um do outro e...
Não dava pra olhar aquilo. Deus. Que diabo. Que diabo de pesadelo era esse em que eu estava metido. Não conseguia pensar. Só olhava pros lados. Da loira cega. Pro Zé passarinho. Pro casal. A mulher agora com um bigode vermelho pegajoso, tentava limpar a boca do marido com um lenço. Sempre rindo. Dentes vermelhos.
As duas feiras estavam de pé agora. Contavam alto. Um. Dois. Três. Levantaram as batinas e se puseram a mijar na mesa. Rindo alto uma da cara da outra. Por baixo das batinas, calcinhas enormes. Cor de pele. Camadas de gordura branca emolduravam umbigos caídos e peludos. Talvez a cena mais perturbadora do almoço.
Foi quando me ocorreu pela primeira vez. Estão todos doidos. Estão todos ficando doidos, juntos, de uma vez, meu Deus, o que é isso, o que é isso? Nesse ponto, meu camarada Zé parou pra beijar a barriga de uma das freiras que ria ainda mais escandalosa agora. Estão todos doidos. Todos.
Nas outras mesas, cenas igualmente bizarras. Algumas cômicas. Ridículas. Ou assim seriam se não fosse tudo tão mórbido. Um grupo de homens se levantara e batia palmas em ritmo desordenado. Cantavam ou tentavam cantar o hino de algum time de futebol. Ou assim parecia. Mas não fazia sentido. Pareciam torcer pra todos. E pra nenhum. De repente, começaram a discutir. Meu time é melhor. Meu time. Seu merda. Seu time de merda. A amizade fora esquecida. Os olhares amistosos se voltaram uns contra os outros. Vi quando um deles pegou uma panela quente de feijão e despejou no amigo ao lado. O homem uivava de dor. O vapor quente escorrendo pelo corpo. Um deles pegou uma garrafa e quebrou no pescoço do outro. De repente, eram apenas uma massa disforme de pernas cabeludas, roupas rasgadas e sangue. Muito, muito sangue.
Os garçons, impacientes contornavam a briga pra poder atender as mesas ao lado. Levavam macarrão ainda dentro da embalagem. Um grande pedaço de filé cru coberto por uma calda de chocolate que o chef vinha derramando enquanto o garçom equilibrava tudo na bandeja. Falta o ingrediente final. E escarrava uma cuspida verde por sobre a carne.
Deus. Todos eles. Todos loucos. Uma senhora com pinta de milionária ria histérica das duas amigas idosas que se beijavam, caindo por sobre a mesa agarradas uma a outra. Um homem agora corria de quatro pelo restaurante, derrubando cadeiras, pessoas e qualquer coisa, tentando abocanhar o Zé que agora era um passarinho que passava cantando por cima das mesas. Um pandemônio. Todos loucos meu Deus. Exceto eu. O que era aquilo? O que podia explicar aquilo?
Mas havia alguém quieto no meio daquele quadro pitoresco. Pitoresco. Gostei dessa palavra. Não sei bem o que quer dizer, mas achei que combina bem com o que se via. Na mesa mais isolada, um canto escuro, reservado. Ele ainda estava lá. Bebendo uma xícara de café, calmo como Satanás admirando o inferno. Sua casa. Num primeiro momento imaginei que estivesse louco também. Cego diante daquelas loucuras, igual os outros no início. Era uma questão de tempo até que começasse a dançar em cima da mesa ou esfaquear o primeiro garçom que passasse. Mas não parecia ser esse o caso. Ele via tudo. Acompanhava com os olhos cada dançarino (agora eram muitos), cada golpe, cada novo jorro de sangue que aflorava naquele restaurante.
E se divertia.
Os olhos escuros passeavam pela cena, um meio sorrisinho na boca. Mas não era como o sorriso dos loucos. Era um sorriso contido. Medido. Sincero. São. Quer dizer. São não podia ser. Quem é que em sã consciência sorri vendo uma tragédia dessas? Não era são. Era um tipo diferente de loucura. Uma maluquice assim mais fria. Calculada. Quer dizer, quando você vê um homem esfaquear outro pelas costas com uma faca e rir depois você até sente uma certa pena do assassino, sabe? É só um doido varrido. Ele nem sabe o que está fazendo. Mas aquele cara. O jeito como ele sorria. O jeito como olhava. Admirava a cena do restaurante. Aquilo ali era um outro tipo de loucura. Bem diferente do que se via ali. O tipo de loucura que você não tem pena. O tipo de loucura que é má.
Ele bebericava a xícara com calma. Olhava pra um grupo. Depois pra outro. Daí tive essa idéia maluca. De que era ele quem estava fazendo aquilo tudo. Sei lá. De alguma forma. A coisa toda tava emanando dele. Como telepatia. Ou sei lá como chamam essas coisas. Ele bem podia ser o tipo que faz essas coisas acontecerem. O terno de velho. O rosto pálido. A careca. Nenhum pêlo a vista naquela cara. Só um tufo que parecia sair de dentro das orelhas brancas. Sozinho. Desde que cheguei ali. Talvez esperando. O momento certo. Pra começar a fazer as coisas acontecerem ali. Mas por que não me atingia? Porque eu era o único naquela cena que não tinha surtado de vez? Quer dizer, não que estivesse muito longe disso. Era uma questão de tempo. Dava pra sentir. Não dá pra ficar normal numa situação dessas. Não dá pra sair normal numa situação dessas. Dá?
Quando ele se virou pra mim, meu coração deu um salto. Não sei exatamente por que. Olhei de volta. Olhos arregalados. Respiração acelerada. O celular inútil na mão. Ele olha pra mim. Eu olho de volta. Ele faz cara de quem não entende. Que foi? Seu filha da puta. Que foi? Que foi, hein? Ele ameaça levantar. Eu sei que não vai. Ele só quer ficar um pouco mais perto. De mim? Por quê? Olha com uma cara curiosa. Um meio sorriso na boca, escorrendo pros lados. Como que não querendo dar o braço a torcer. Como quem não entende bem porque as coisas não estão acontecendo do jeito que ele imaginou. Que diabos ele tá fazendo? Quem é esse cara? O que é esse cara?
A loira esbarra em mim. Gritando ainda qualquer coisa sobre sapatos e descontos. Se ela não calar a boca agora eu juro que esfaqueio ela. E olha que eu não estou louco. Empurro ela pro lado. O careca bizarro ainda me encarando com aqueles olhos estranhos. Quando eu empurrei a loira peguei alguma coisa da mão dela sem querer. Um pedaço de papel. Espera. É o bilhete. Aquele que eu mesmo escrevi. Parece que se passaram dias desde que eu tava ali sentado com o Zé. Escrevendo aquela merda. Quando as pessoas ainda estavam normais. Quer dizer, normais elas nunca foram, não é verdade? Quem é normal nesse mundo insano? Mas pelo menos elas não tinham começado a dançar e se esquartejar dentro de um restaurante. O bilhete ali. Nem me lembro o que tinha escrito. Tá bem manchado de sangue, mas ainda dá pra ver o meu garrancho. Uma única frase.
Oi linda, que belo dia pra morrer.
Deus. Quando eu escrevi isso? Quer dizer, eu não me lembro. Não me lembro de ter escrito isso. Mas a letra é minha. O bilhete. Eu escrevi isso. Mas como? Morrer? Que diabos eu escrevi? O careca. É tudo culpa do maldito. Canceroso de merda. Volta aqui. Praonde você pensa que vai? Filha da puta. Volta aqui. Ele tá levantando. Colocando um chapéu. Apanhando a pasta. Deixou uma nota em cima da mesa. Ele tá indo embora. Não vai não. Não vai mesmo. Volta aqui. Ele olha. Sem muito interesse. Dá um meio sorrisinho. Acena e vai indo na direção da porta. Não senhor. Volta aqui. Volta aqui, porra. Me larga Zé. Me larga Zé, agora! Porra Zé. Isso tá machucando. Essa porra tá machucando, Zé. Essa porra tá cortando, Zé. PÁRA COM ESSA PORRA, AGORA!

Loucura

Não me lembro se foi idéia minha ou dele. Talvez dos dois. O fato é que enjoamos de comer o mesmo feijão com arroz batata frita filé de frango que todo dia engolíamos no bar restaurante da Rua do Ouvidor na nossa hora do almoço. Decidimos tentar o restaurante mais pro final da rua, ali na altura do escritório de advocacia. Parecia meio caro, mas tudo bem. A gente ganha o bastante pra se dar a esses pequenos luxos de vez em nunca. O Zé falou que já tinha levado uma das vadias dele pra jantar ali. Disse que tinham um espaguete com um tempero maravilhoso. Por mim, tudo bem.

Entrei no lugar e me vi rodeado de colarinhos brancos e celulares. Um garçom gente boa nos conduziu até uma mesa mais pro canto esquerdo. Sentamos lá e passamos os olhos pelo menu, despretensiosamente. O Zé veio com um papo de trabalho que eu não tava muito a fim de ouvir. Cortei logo de cara e puxei assunto sobre o jogo do mengão da quarta-feira. Não tava com muita cabeça pra trabalho não. A gente sempre almoça junto. O Zé e eu. É o único cara que eu tenho paciência o suficiente pra trocar uma idéia nos intervalos da papelada do escritório. Trabalha duro. Que nem eu. E tem consciência de que não vai progredir muito mais na empresa. Que nem eu. Mas tudo bem. Só tenho duas pensões e um aluguel relativamente barato do meu apartamento em SantaTereza pra pagar no começo do mês. Dá pra viver tranquilamente.

Olho pros lados, tranquilo. Sabe como é. Pra dar uma olhada na gente rica da zona sul que povoava o restaurante. Todos bem arrumados. Um bando de gente almoçando, jogando conversa fora, tocando suas vidas. Numa mesa, meia dúzia de amigos de escritório tomavam sua cerveja antes da refeição. Na outra, duas feiras tomavam uma xícara de café, conversando baixo. Tenho um pouco de medo de freiras. Não sei bem o motivo. Como se elas tivessem o dom de ler teus pensamentos, sei lá. Nas outras mesas, nada que chamasse muito a atenção. Um casal jovem sem graça nenhuma. Um grupo de coroas ricaças da zona sul. E mais ao longe uma figura mais distinta. Cara esquisito. Uma cara de paisagem, enquanto bebericava sua xícara de café. Pálido como a morte. Careca. Olheiras escuras repousando sob as pálpebras. Talvez tivesse câncer. É. Devia ser isso. Era câncer, coitado. Mamãe morreu disso. Já era idosa, mas a velha sofreu. Esse cara devia ter uns trinta, quarenta anos. Minha idade. Pobre diabo.

Minha atenção foi desviada dele repentinamente. Não entendi como não tinha percebido antes. Não sou mais o velho tarado que costumava ser. Cabelão loiro jogado pra trás. Um par de olhos claros. Dessa distância pareciam verdes. Roupinha de gente de escritório, batom vermelho, falando ao celular. Meu tipo. O garçom gente boa trouxe uma cerveja. Eu rabisquei qualquer coisa num pedaço de papel e pedi pra ele entregar o bilhete pra loira. Velhos hábitos a gente nunca perde. Não tinha muitas esperanças. Quer dizer; sou um cara atraente, eu acho. Me visto bem. Tenho cabelo. Tenho dinheiro. E tenho uma boa dose de charme. Mas sei lá. Aquele é o tipo de mulher que não se deixa levar por um bilhetinho no almoço e um sorriso de um babaca de escritório de meia idade do outro lado do restaurante.

Voltei minha atenção pro meu camarada, o Zé. Deixa ser. Se tiver que rolar, vai rolar. Papo vai, papo vem e lá vem o Zé falar da ex-mulher de novo. Puta que pariu. Cara chato com essa história outra vez. Parece que ele simplesmente não consegue superar. A tal macarronada tava demorando. Até demais. Não sei se o bilhete chegou ao seu destino ainda. De vez em quando dava uma olhadinha pro lado da loira pra ver se pego algum sinal de interesse. O Zé riu da minha cara e me mandou tomar jeito. Acho que não dá mais tempo pra mim. Depois de três casamentos arruinados por rabos de saia alheios, não tenho mais esperança de sossegar com uma mulher só na vida não.

Estávamos num papo animado sobre quem era a mais gostosa do escritório quando de relance, vi a loira encarando. Já disse. Não tinha muitas expectativas, então tive que virar de novo pra tentar capturar mais algum sinal de interesse. E aí, surpresa. Do nada a loira levantou e veio em minha direção. Sabe quando você vira, olha, não acredita e vira pra olhar de novo? No susto. Não era possível. Ela devia tar indo em direção ao banheiro e se perdeu no caminho. Ou. Pior. Ela tava vindo tirar satisfação. Era isso. Vinha andando decidida. Passo firme. Sabia bem praonde ia. Na direção da nossa mesa. Minha e do Zé. Era isso. Ela ia chegar. Falar umas poucas e boas, virar as costas e voltar pra mesa dela. Com toda classe. Talvez o marido fosse policial. Ela era bem o tipo de mulher de policial. Já me meti com esse tipo outra vezes. Péssima experiência, cara. Papo sério.

O pior era a cara dela. Não dava pra adivinhar que diabo ela vinha matutando ali naquela cabeça loira pra me falar. Não dava. Mesmo. E eu costumo ser bom em interpretar mulher, sabe? Eu geralmente sei o que elas vão responder depois de ouvir uma gracinha da minha boca. Já saio preparado quando sei que o tapa na cara vai ser inevitável. Ou já vou chegando junto quando a safada diz que sim com o sorriso, sem nem abrir a boca pra falar.Mas dessa vez...sei lá. Simplesmente não dava pra saber. Ela vinha com aquele jeito. Andando com a bunda, fazendo um garçom ou dois se voltarem pra olhar. Os olhos não diziam coisa nenhuma. Vai se foder? Eu quero te dar?

Não. Era impossível dizer. Simples assim.

Conforme se aproximava, deu pra ver que ela carregava alguma coisa na mão. O bilhetinho sujo que eu tinha acabado de escrever. Já nem lembrava o que tinha escrito. Meio que saiu no automático. Sabe? Quando você faz uma coisa mais de mil vezes e ela vira automática. Você faz a parada e nem lembra de ter feito no momento seguinte. Simples assim. Eu sou canalha assim.

A coisa é que o bilhete tava lá na mão dela. E agora, mais do que nunca eu tinha certeza absoluta que ia ouvir um belo fora. Em grande estilo dessa vez. Ela vinha andando em passos largos. Nem muito rápido. Nem devagar. Só passos largos. Do tipo que você sabe que vão chegar até você em um instante. Quanto tempo? Não da pra saber. Mas você sabe que é logo. Dá aquela ansiedade insana. Pra que a demora meu Deus? Acaba logo com essa porra. Dá o teu fora, joga um copo d’água na minha cara e pronto. Fim de história. Termino meu almoço com meu companheiro, como se nada tivesse acontecido, volto pro escritório e toma uma cerveja no final do dia me vangloriando da atenção que consegui roubar de você pros meus camaradas bêbados sorridentes.

Ela vinha andando e as formas das coxas dela iam ficando mais e mais evidentes; mais e mais maravilhosas. A cada passo. Que mulher, meu Deus. O olhar fixo em mim. Era desconcertante. Em situações normais eu sustentaria aquele olhar. Mas não deu dessa vez. Não conseguia explicar o motivo. Ela parou há meio metro da nossa mesa.

O Zé olhava sem graça pro outro lado. Sempre foi um cara tímido. Acho que é por isso que gosto dele, sabe? É o oposto de mim. Gosto de gente assim. Bem diferente de mim. O que me faz pensar que talvez eu não goste é de gente igual a mim. Faz você pensar, né.

Ela parou ali e abriu a boca devagar como se tivesse medindo o que ia falar. O tom exato. A dose exata. As palavras exatas. A direção exata. Ela não precisava ser adivinha pra saber que tinha sido eu quem escrevera o bilhete. Quer dizer, olha só a minha cara de safado. Ela me denuncia, aonde quer que eu vou. Desde...sei lá. Sempre?

A coisa é: ela pára. Abre a boca devagar. E de repente, sem aviso, completamente do nada, escancara a boca num berro. Um turbilhão de palavras sem conexão nenhuma. O berro mais louco que eu já tinha ouvido na vida. E olha que fui casado três vezes, hein. Ela berrava. No começo não dava pra entender direito o que era. Mas depois que os ouvidos começaram a se acostumar com o timbre daquela voz fina comecei a pegar alguma coisa. O Zé olhava com os olhos arregalados pra mim, sem reação. Não que eu tivesse prestando muita atenção no Zé. Só dei uma olhadela rápida. Só pra ter certeza de que ele também estava escutando aquela maluca começar a gritar do nada.

Quer dizer. Qual é, né? Eu não lembro de ter escrito nenhuma pornografia. Não tinha necessidade nenhuma daquele papelão todo. Fala sério. Em meio à confusão e ao leve resquício de vergonha que ainda me resta na cara, comecei a juntar as palavras que ela dizia. Estuprador. De mulheres. Casadas. Vergonha. Sociedade machista. Capitalista. Sapatos. Preciso de sapatos. Meu marido. Aquele filha da puta. Não me dá uns sapatos. Aquele infeliz de merda. Minha vida é uma merda. Você é um merda. Que nem eu. Eu não quero mais isso pra mim. Eu não quero,não quero, não quero, não. Não. Quero.

E aí teve o garfo.

É. Eu tava ali parado, de boca aberta. Assistindo aquela cena ridícula. Pela primeira vez eu tive a curiosidade de olhar em volta. Pra ver os rostos voltados na nossa direção. Cabeças balançando na negativa. Olhares de espanto. Um garçom ou dois vindo de fininho pra tentar apartar a confusão. Talvez oferecessem um drinque de cortesia pra dama. E educadamente convidariam os dois cavaleiros a se retirar do recinto e não voltar mais por favor. Foi por conta da casa. Obrigado. Passar bem. Eu olhei em volta. Mas o bizarro era justamente isso.

Ninguém estava olhando. As pessoas continuavam ali, na mesma. Sem dar a menor importância pros gritos histéricos. Pra nós. Nada. Nem os garçons pareciam se dar conta. Como se a minha mesa estivesse envolvida por uma bolha invisível. A prova de som. Só eu, o Zé e aquela loira maluca gritando sem parar. Falando da vida dela. Não, gritando a vida dela a plenos pulmões. Eu não tava entendendo aquilo. Não fazia sentido.

E aí, teve o garfo.

Ela tava gritando algo sobre as contas. Sobre o filho do marido. Que não queria. Não queria não. Não. E aí, de repente, em menos de um segundo ela tava com o garfo na mão. Fiquei sobressaltado na hora. Achei que fosse partir pra cima. Claro. Era a coisa mais óbvia que uma doida podia fazer numa hora dessas, né? Mas não. Foi tudo bem rápido. Mas rápido do que meu cérebro conseguiu processar. Não deu tempo de entender. De conceber aquilo que ela fez.



continua...