domingo, 12 de abril de 2020

Introdução ao Logus - Primeira Parte

                                                                    ***

É engraçado como uma coisa simples como o toque de um telefone pode assim de repente se tornar algo tão nocivo pra tua saúde mental. Me lembra um fenômeno descrito na psicologia animal. “Resposta de freezing condicionado”. Aprendi na televisão. Quando você passa a associar um estímulo normal a alguma coisa ruim. Como dar um choque elétrico num ratinho toda vez que tocar o som de uma buzina. Eu sou o rato. O telefone é minha buzina. E eles são o choque.
Ainda lembro a última vez em que ouvi o toque de um telefone sem que meu coração parasse. Sem que meus olhos revirassem nas órbitas e um suor gelado escorresse pela minha testa. Sem que todos os cabelos do meu corpo se arrepiassem. Começando pelo antebraço e subindo devagar ate as costas e os pelinhos da minha nuca rala. Como se um espírito vestido de branco sentado ao pé da minha cama suspirasse alguma profanação no pé da minha orelha. Era manhã. Não consigo lembrar o ano. Muito menos o mês. A noção de tempo se tornou uma nebulosa difícil de dissipar na minha mente fragilizada. Ainda mais aqui encerrado neste quarto pra gente doida. Era manhã. Eu era uma pessoa normal. Um cidadão de bem cheio de boas intenções, desses que o Inferno está tão cheio. Tinha emprego. Amigos. Uma noiva. E assim o telefone começou a tocar. E eles chegaram. E tiraram tudo de mim. Só deixaram pra trás esse pedaço de carne remoída semi morta incapaz de manter um diálogo com outro ser humano. Que só pode se comunicar por cartas como esta que vos escrevo agora. Talvez seja a última. Era manhã. Provavelmente de uma segunda-feira. Porque eu andava morto de sono. E só fico assim segunda de manhã. O telefone tocou quando eu tinha a mão na maçaneta pra sair atrasado pro trabalho. Antes não tivesse atendido. Antes não tivesse escutado. Se tivesse saído cinco minutos antes nunca teria atendido ao primeiro chamado. E talvez ainda fosse aquela pessoa normal cidadão de bem cheio de boas intenções que o Inferno está cheio.
Mas eu atendi.
E agora estou aqui. Alô? Sem resposta. Só a respiração pastosa do outro lado. Asquerosa. Pesada. Carregada de uma raiva contida que beirava a insanidade. Juro que podia sentir o individuo respirando do meu lado. Alô?? Pensei que fosse trote. Desliguei. Outro toque. Atendi nervoso. Porra quem é? Dessa vez me chamaram pelo nome completo. A respiração agora mais contida. Transparecia uma espécie de felicidade insana dessas que você escuta no tom dos apresentadores de programa de televisão. Sim? Sou eu. O senhor foi selecionado. Selecionado pra quê? E a resposta absurda: Pra fazer parte da comissão atuante do Logus. Minha paciência já andava curta. Desliguei sem pensar. O nome permaneceu na minha cabeça. Que diabo era Logus ? Não importa. De alguma forma tinha a sensação de já ter escutado o nome. Como uma canção de ninar chata que cantavam pra você na infância. O nome estava lá desde sempre. Enterrado nas profundezas do meu cérebro. Mas eu nunca havia pensado nele. Ou talvez sim? Como se fosse o número de telefone de uma ex que você já esqueceu há duas décadas. E agora volta a tona depois que este louco mencionou pelo telefone. Sai de novo pro trabalho. O telefone tocou uma vez mais. Eu não atendi.
Pela última vez deixei de atender ao telefone. Uma demonstração avassaladora do tal “freezing condicionado”.
                                               

                 ***

Lembro pouco depois disso. Entrar no carro. Meter a chave na ignição. E o grito. Nunca havia visto alguém ser morto até aquele momento. Sempre morei na Zona Sul do Rio. Não é normal ver gente morrer na rua assim de bobeira por aqui. Muito menos de forma violenta. Tinha um senhora que morava no apartamento abaixo do meu. Ela sempre ia regar um jardinzinho do condomínio em que morávamos na mesma hora em que eu saía de carro pra trabalhar. Ela estava lá como todas manhãs. Com seu vestido florido de velha da Zona Sul. Sempre com o mesmo sorriso de quem acha que vai viver pra sempre só porque tem o cu cheio de dinheiro e uma penca de netos loiros pra manter o legado do seu nome. Dei bom dia antes de entrar no carro. Ela me deu uma resposta estranha. Não entendi na primeira vez. Quando botei a chave na ignição percebi os dois sujeitos que estavam atrás dela. Perto demais. Tarde demais. Foi a covardia mais brutal que já testemunhei. Até aquele momento pelo menos.
Um dos sujeitos tomou a velha por trás num mata-leão. Devia ter uns dois metros. Uma barriga avantajada mas os braços fortes como de um gorila. Usava óculos. Se você encontra um sujeito dessas na rua vai jurar que é um PM aposentado. Um cara normal andando no centro do Rio indo tomar uma cerveja ou passar na casa de massagens. Você não espera que um sujeito desse vai tomar uma velha por trás daquele jeito. E o outro. O outro era pior. Porque não devia ter nem vinte anos. Magrelo, alargador de orelhas, cabelo liso escorrendo na testa. Um moleque que devia estar prestando a merda do ENEM ou trabalhando em uma loja de roupa do shopping. Enquanto o gorila agarrava a velha, o moleque puxou uma faca do bolso do jeans. Não era uma faca qualquer. Parecia uma arma saída de um filme medieval da sessão da tarde. Com um movimento, o moleque abriu a barriga da velha de um lado ao outro. Como se fosse um sorriso largo vermelho esvoaçando intestinos e merda por todo jardim do condomínio. A faca era boa. O corte deve ter demorado uns dois segundos pra ser feito. A velha guinchava como um porco o tempo todo. Até cair no chão com aquela expressão que nunca mais vai parar de assombrar meus sonhos. Tudo ficou turvo pra mim. Lembro de ter tentado abrir a porta do carro mas não deu tempo pra evitar meu café da manhã atingir o painel com força sujando a poltrona e meu terno. Os dois vieram na minha direção. O grandalhão levantou a minha cabeça e o moleque me disse algo que não pude assimilar na hora. Nunca mais ignore um chamado do Logus. Antes mesmo do grandalhão enfiar um direto na minha boca eu já tinha desmaiado. De puro terror.

                                                                  ***