A luz sempre foi uma coisa que me perturbou
bastante. Dói. Pra valer. Começa com uma queimação. De dentro pra fora. Arde
como se o inferno se abrisse diretamente na minha pele. Essa é a razão pela
qual eu vivo nas sombras.
Existem outras também,é claro. Desde que esse mundo
se tornou um formigueiro desses famigerados seres que se chamam homens. Não me
levem a mal,por favor. Não chego a ter medo de vocês.Estou certo de que não são
páreo para mim. Não quando estão sozinhos. E com medo.
Ah...O cheiro do medo. Salivo só de lembrar. Como
poderia descrevê-lo pra vocês? Vocês que só têm cinco limitados sentidos e não
podem desfrutar do sabor das emoções? Vocês que matam por ganância, por
egoísmo,por ódio ou até por prazer. Mas que não sabem realmente desfrutar do momento
da morte alheia. Não podem sentir o gosto. O gosto do desespero.
Sinto tesão só de pensar. Não o sexual. Não tenho órgãos próprios para o sexo.
Só disse ‘tesão’ pra tentar fazê-los entender. É muito parecido com essa
necessidade que vocês têm de buscar por um parceiro. O que motiva vocês.
Direciona vocês. Para o inevitável desfecho da cópula. É o mesmo que acontece
comigo. Mas ao invés do beijo, meu desfecho é o sangue. A textura do sangue
quente escorrendo pela minha boca. É algo que não consigo expressar com nenhuma
palavra que vocês tenham inventado.
Da onde eu vim? Pra onde eu vou? Essa é minha única semelhança com vocês. Não
saber. Lembro de uma noite. Era mais escura do que as noites de hoje em dia.
Mais fria também. Bem mais fria. Não que o frio me incomode. Até gosto dele. Me
deixa mais agitado. Mais sedento até. Lembro-me desta noite como se fosse
ontem. Foi a noite que eu chamo de “Noite do Despertar”.
E lá estava eu. Lembrodas primeiras formas que vi. Os
primeiros cheiros. As primeiras ânsias. A Noite do Despertar. Minha Noite. Meu
Despertar. Antes parado. Agora vagando. Esperando. No escuro.
Vagando praonde? Esperando pelo quê? Não saberia
dizer. Lembro-me de sentir a sede vindo pela primeira vez. Não a entendia. Não
sabia o que fazer. Até que o avistei. Era grande. Peludo também. E tão quente.
Eu avancei em sua direção sem saber exatamente o que esperar ou o que fazer.
Aconteceu tudo naturalmente. Como se fosse apenas o fluxo da vida (ou da
morte?) seguindo seu curso. Ele gritou por um instante. Guinchou. Esse seria o
termo mais correto. Guinchou. O barulho despertaria vários outros seres que
estavam dormindo nas sombras das arvores ali perto. Eu até me assustei com o
alvoroço que fizeram. Faz tanto tempo que não me assusto. Depois de tanto
tempo, as coisas perdem um pouco da graça inicial. Nada mais me surpreende.
Nada mais consegue me assustar. Foi quando senti o sangue. Tão quente. Quando o
primeiro esguicho atingiu o cerne de meu ser, não consegui mais parar de beber.
E beber.
Só beber não tem tanta graça. Eu preciso
despedaçar. Arrebentar a carne sem vascularização. Revirar as entranhas. Nunca
soube a razão dessa necessidade. Talvez uma necessidade desesperada de sugar
algo além do sangue. Pode parecer mórbido pra maioria de vocês. Mas eu
simplesmente preciso. Necessito. Sei que alguns de vocês me entendem. Quando
terminei com aquele simpático ser peludo senti umaoutra coisa. Me pegou
totalmente desprevenido. Acertou-me nas costas. Como um chicote de puro fogo.
Um chicote de luz.
Amanhecia. E doía. Terrivelmente. Fugi pras sombras
das arvores ali perto. Estava perdido. Encurralado numa pequena ilha de sombras
enquanto um oceano de luz inundava o mundo no qual eu acabara de despertar.
Sabia que se me demorasse mais alguns segundos exposto àquela nociva radiação
estaria morto. Foi a primeira vez que pensei na morte. No primeiro dia de minha
existência.
Seria melhor se fosse desse jeito pra vocês também.
Eu os observo há tempos. E acho cômico o fato de só pensarem na morte no final
de suas vidas. O desespero vai crescendo com sua proximidade até tornar-se
massivo em suas almas .Até vocês se afogarem nele e desejarem com toda força
ter seus anos de vida de volta. Só mais alguns anos.
Eu gosto do desespero. É um tempero a mais quando
eu começo a morder. Mas pra vocês... Parece horrível. Então tomem isso como um
conselho. Pensem na morte o quanto antes! De preferência no primeiro dia de
suas vidas. Tal como eu fiz.
A gente para de contar os dias depois de muitos
anos. Parecem todos iguais. É entediante. Dá nos nervos. Foi assim que um dia
eu decidi acabar com tudo. Eu costumava preencher minhas noites caçando e
vagando cada vez mais para o Norte. E fui indo. Foi assim por algumas centenas
de anos. Eu sou bem rápido, por falar nisso. Muito mais do que todas as
criaturas que encontrei em meu caminho, pelo menos. Elas não tinham a menor
chance. Seres estúpidos. Sem criatividade pra criar armadilhas como eu. Sem
habilidade de pensar rápido como eu. De sentir prazer como eu. De morrer de tédio
como eu. Fui indo assim sempre em direção ao Norte. As paisagens foram mudando
radicalmente. Savana,deserto,campo,montanha e gelo.
Isso me aguçava a curiosidade pra continuar
vagando. Me sentia um verdadeiro aventureiro.Tanto gelo. Nessa parte do caminho
me desesperei um pouco. Eram raras as criaturas. Mas eu sou um bom caçador. Senão
o melhor. Conseguia encontrá-las. Apesar do frio e da escuridão que imperavam
naquela região. Eu gostava da escuridão de lá. Mas eu também gostava da fartura
de presas. E elas não eram muito freqüentes por lá. Então continuei indo pro
Norte. O Gelo Infinito começou a me desesperar. Imaginei que ele nunca
terminaria. Mas já tinha vagado tanto. Não queria voltar por onde eu vim.
Oceano
vasto. Eu posso vagar pelas águas também. Nunca me atrevi a mergulhar muito
fundo .Algo nas profundezas do mar me perturbam. Não tanto quanto a luz do dia.
Mas é o bastante pra me deixar submerso por pouco tempo. Doze horas. É tudo que
posso agüentar embaixo d’água. O bastante pra encontrar presas (ainda mais
estúpidas das que habitavam em terra firme diga-se de passagem). O bastante pra
me esconder da Luz do dia e continuar vagando pela noite. E assim continuei
para o Norte até encontrar terra firme novamente. E dessa vez sem gelo! Que
novas terras seriam essas que surgiam a minha frente? Me animei novamente.
Continuaria.
Sempre para ao Norte.
Qual não foi minha surpresa quando acabei voltando
pra um lugar bem familiar. Aquele vale. Aquele monte mais á frente. Aquele
riacho. Aquelas presas. Tinha retornado ao mesmo lugar daonde partira. Quanto
tempo se passara desde a partida? Alguns séculos? Um milênio talvez? O mesmo
lugar. E foi esse o dia, meus estimados leitores. O dia em que resolvi acabar
com tudo.
Estava preso. Um mundo sem começo nem fim. Um mundo
com limites para minha curiosidade. Um mundo finito. Grande, porém finito.
Então me decidi.
Era noite estrelada. Sempre admirei as estrelas.
Tão distantes. Tão misteriosas. Só surgiam a noite. Assim como eu. Mas tinha medo delas. Receava que pudessem
cair do céu,direto na minha cabeça.E me banhar numa chuva inesperada de
Luz.Queimando minhalma.Acabando com minha existência.
Faria minha ultima refeição. Destroçaria um pequeno
rebanho de animais peludos e esperaria a Grande Estrela nascer e me desintegrar
por completo desta terra. Reparei que as presas tinham mudado um pouco. Haviam
algumas das quais não me recordava. Havia até um rio onde me recordava que não
havia. Pequenas mudanças. Lentas demais. Não eram o bastante pra me animar a
continuar nesse mundo.
O Sol já estava quase lá. Com os anos aprendi a
sentir sua vagarosa chegada,horas antes de acontecer.Vagava ainda pelo
campo,seguindo as margens do rio. Foi então que senti um cheiro.
- -
Era diferente de tudo que já havia sentido. Único.
Aguçou meus sentidos novamente de uma forma que não experimentava havia
séculos. Senti-me animado de novo. Não conseguia entendê-lo. Era belo ,de uma
forma triste e convidativa. Senti como se nascesse de novo. Como no Dia do
Despertar. Animei-me novamente. Animei-me a viver.
Persegui aquele odor. Era familiar de uma certa
forma. Parecia com o cheiro do medo que eu já estava tão familiarizado. Mas
tinha algo de diferente nele. Algo mais. Não saberia dizer o que é. Não tenho
certeza se o sei até hoje. Algo novo. Único. Algo a mais.
No escuro,eles não me viam.Mas eu definitivamente
os via.E sentia. No fundo de uma caverna perto do rio. Contei treze corações.
Me aproximei de um. E mordi.
Não poderia descrever em palavras o que senti. Uma
experiência pra se recordar. Não era como os brutamontes peludos que estava
acostumado a encontrar naquelas terras.Não. Era...Único.Inédito.
Foi mais do que orgásmico,por assim dizer.O gosto
de sangue veio com algo mais. Uma certa essência. Uma carga de emoções que
transcendiam qualquer emoção. Sentimento. Não era só o medo de sempre. Era o
desespero. O terror. Não era apenas a dor. A boa e velha dor que eu saboreava
quando me fartava com os rebanhos. Era uma coisa além da dor. Uma coisa além do
sentir. A criatura gritava. Sim, essa gritava,de fato. Os outros acordaram com
os gritos. Pobres diabos. Me fartaria de todos em poucos minutos. A carnificina
impregnaria a caverna. Talvez demorasse um pouco mais. Apesar de pequenos,era
deliciosamente maravilhoso mordiscar cada fibra de músculo. Destroçar cada
osso. Saborear cada nova sensação que eu tinha em cada mordida. Era único.
E de repente foi minha vez de sentir dor. Se é que
posso dizer que sinto alguma coisa,de fato. Mas o fato é que me pegou
desprevenido. Assim como no Dia do Despertar. Uma rajada de luz. Aquela maldita
Luz. Direto nas minhas costas. Daonde viria? O Sol só viria dali a um par de
horas. Um outro bando deles viera em socorro dos gritos. Eles eram sociáveis.
Assim como os brutamontes peludos. Alias, não.Eram ainda mais sociáveis do que
eles. Estavam se ajudando. Malditos sejam. Estavam se ajudando uns aos outros.
Se organizando. Contra mim!
Um deles segurava um pedaço de galho.E na ponta,
luz. O maldito segurava Luz. Como era possível? Meus maiores receios tinham se
materializado diante de meus olhos. Uma estrela. Aquelas malditas criaturas
tinham conseguido capturar uma estrela! E a usavam contra mim. Esse foi outro
dia em que me assustei. Havia pouco almejava deixar este mundo. Mas essa
novidade era algo maravilhoso demais pra não ser explorada. Pra não ser
devidamente saboreada. Queria viver. Como queria viver. Se quisesse poderia ter
matado todos antes da Luz me consumir por completo. Mas queria viver. Por isso
matei uma dúzia apenas antes de fugir da caverna de volta pra floresta. Não
pude saboreá-los como mereciam. Mas só o contato com suas gargantas
ensangüentadas era o bastante pra me deixar enlouquecido de vontade de voltar
ali. Noite após noite. Para saboreá-los devidamente.
Descobri que havia mais deles em outras cavernas.
Descobri que eles tinham estrelas escondidas em outras cavernas também.
Descobri que eles podiam pegar pedaços de estrelas na ponta de galhos.
Malditos. Como faziam aquilo? Eu os odiava. E os amava. Como poderiam ser tão
engenhosos? Defendiam-se de mim. Esquivavam de meus ataques. Armariam
emboscadas pra mim depois de alguns anos. Ficavam mais numerosos. Eu contribui
para isso inconscientemente, admito. Não os atacava com tanta freqüência quanto
gostaria.
Pra preservá-los. Minha gula poderia acabar com sua
existência. E quando menos esperei,sua existência se tornou a razão da minha
própria.
Malditos. E maravilhosos. Seres humanos.
- -
Cada um deles tinha um gosto. Alguns eram doces
como a seiva que escorria das arvores. Outros eram salgados como as criaturas
viscosas que habitavam o mar. Alguns eram gelados como as pedras transparentes
que encontrei ao Norte. Outros eram quentes, quase como um raio de Luz. Cada um
deles era uma surpresa. Um gosto único. Uma sensação única. Como podiam ser tão
maravilhosamente deliciosos? Quando revirava suas entranhas, era
diferente.Quando partia seus ossos. Era diferente. Era sempre magicamente
diferente.
Às vezes tornava a caçar brutamontes peludos e
outras espécimes que surgiam na paisagem. Só pra poupá-los. Deixá-los
proliferarem. Pareciam fazer isso a uma velocidade notável. Mas não suficiente
pra mim. Não suficiente pra me fartar daquele banquete maravilhoso de
pensamentos,emoções,desejos e existência.
E tinha
aquela coisa. Às vezes eu dilacerava a cabeça de um pequenino durante a
madrugada só pra sentir aquela coisa. Vindo direto do casal que parecia tomar
conta dos pequeninos. Era algo mais poderoso do que qualquer coisa com a qual
me deparara em minha Longa Jornada nesse mundo. Algo mais brilhante que a luz
do sol. Algo mais poderoso que a força das ondas. Algo maior do que o Mundo
todo.Maior do que eu. Era intoxicante .De uma forma maravilhosa.Era
maravilhosa.
Sabia que essa coisa pudesse assumir uma forma me
consumiria mais rápido que uma estrela cadente. Mas sentir seu faiscar vindo de
um pai em fúria era a coisa mais fascinante que experimentara nessa terra.
Muitos anos passaram até essa coisa ser percebida por aquele bando de bárbaros
que não entendiam o quão maravilhosa era sua própria existência.
Mais anos seriam necessários para que dessem um
nome a essa coisa. E mais um punhado de anos até que começassem a valorizar
esta coisa tão preciosa. O nome, meus estimados leitores, vocês já devem ter
adivinhado se tiveram a oportunidade de senti-la alguma vez em suas vidas.
Demoraram alguns anos até que vocês o chamassem de
Amor.
- -
E aqui estou divagando em minhas memórias mais uma vez.
Minha memória é ótima.Ao contrario da de vocês. Eu
poderia ter dado de cara com algum de vocês quando eram crianças e vocês nunca
se lembrariam. Como alguém poderia ter sobrevivido a um encontro comigo,vocês
se perguntam? Explico no final deste breve relato.
Eu poderia dissertar sobre todas as migrações de
sua espécie.Poderia relatar o surgimento de aldeias. Da agricultura. Dos
Impérios e Reinos dos Homens. Poderia discursar sobre os gênios e profetas que,
apesar de uma curta existência nesse mundo puderam entender sua natureza e a
natureza do Amar. Poderia lembrar das revoluções que vi. Do sangue derramado.
Das invenções maravilhosas e às vezes catastróficas que vocês fizeram. Poderia
citar as contradições. A corrupção, as mentiras,a dor que causaram a vocês
mesmos.
Poderia comentar as Grandes Navegações,as quais eu
fiz questão de acompanhar até chegar em Terras distantes Além Mar. Poderia
lembrar da bússola,da vitrola,da MALDITA lâmpada elétrica. Dos telefones
celulares,da Internet e dos avanços da Medicina,uma tentativa de perpetuarem
seus dias nessa terra.
Poderia discursar sobre como aprendi com vocês a
deixar registrado meus pensamentos,minha experiência,minha história. Na forma
das palavras. São muito limitadas,as palavras. Mas até que me foram úteis para
deixar registrado esse relato, se é que alguém se interessaria em lê-lo algum
dia.
Poderia odiá-los por serem piores do que eu mesmo
em sua ganância e ódio e inveja e egocentrismo e na sua maldita mania de
acharem que são diferentes uns dos outros quando na verdade são idênticos nos
seus anseios,desejos e amores.
Poderia odiá-los ainda mais por poderem sentir de
uma maneira que eu mesmo não poderia.Por estarem dispostos a dar suas vidas uns
pelos outros. Por amarem. Como eu os odeio por poderem amar.
Se soubessem...Se ao menos soubessem o quão
precioso é o dom de Amar. Eu daria qualquer coisa, minha existência,minha
sabedoria dos milhares de anos de vida, minha sede, meu Prazer. Eu daria
qualquer coisa pra fazer o Amor emanar de mim. Sem precisar devorá-los pra
podê-lo sentir. Se houver um Deus como vocês insistem, por favor faça emanar de
mim. Ao menos uma vez. Dê-me,ó Grande e Poderoso Deus do Universo a capacidade
de Amar! Por que não posso tê-la também? Por quê? Por quê preciso destroçá-los
pra sentir uma faísca apenas?
(Um rasgo no papel)
Perdoem meu breve momento de súplica irracional.
Voltemos ao resumo de minha história de vida. Devem estar se perguntando, estimados
leitores,como é que uma criatura que não suporta um feixe de luz poderia
existir numa sociedade que não dorme.
Admito que não tem sido fácil. Eu me lembro de uma
noite. Alguns poucos séculos atrás. Eu vagava pelas então chamadas Cidades. As
lamparinas já existiam havia tempos. Aprendi a prever quando elas se
aproximavam e me esquivar habilidosamente dos malignos raios que desintegrariam
minha existência. Aprendi a manter uma distancia segura delas. E o mais
importante. Aprendi a esperar. Como nunca.
Lembro de certa vez em que esperei por dias até que
toda luz de um certo quarto no qual me meti sumisse por completo. A sede era
tanta... Nunca ficara sem me alimentar por tanto tempo. Começara a sucumbir a
minha sede. Não poderia avançar. Era um quarto bem iluminado numa casa grande
no topo de uma colina. Uma menininha dormia lá. Se chamava Catarina. Catarina
tinha medo do escuro. Esse medo parece ser recorrente na sua espécie.
Tenho uma teoria. Talvez vocês saibam de minha
existência. A nível subconsciente,talvez. Talvez pressintam minha chegada. E
tenham medo que eu me esgueire por uma fresta em sua janela. É tudo o que
preciso. Foi assim que entrei no quarto de Catarina.
Um cantinho escuro. Um vão embaixo de uma cama. Um
vazio no seu armário. Um sótão largado as traças. Um porão. Eu adoro porões e
armários,em especial.
Mas voltando a Catarina. O fato é que a pequena
tinha medo do escuro. De forma que nunca deixava a lamparina em cima de sua
cômoda apagada durante a noite. Sua mãe sempre acendia-a às cinco da tarde.
Ainda era claro. Claro demais pra eu sair de meu esconderijo. E assim esperei.
Três dias ,quatro dias,não sei. A sede começou a me deixar fora de mim. Tremia.
Não conseguia me conter mais tempo. Avançaria em direção a menina e seria
consumido pela Luz antes mesmo de partir seu pescoço. Seu pai me salvou.
Pobre diabo. Insistia para que a menina apagasse a luz
aquela noite. Dizia que já era crescida o bastante pra ter medo. Como se alguém
pudesse ser velho o bastante pra não sentir medo. Se soubesse que mesmo eu, com
meus milhares de anos de existência ainda sentia-o vez ou outra.
A menina chorava. Chamava a mãe. Mas os homens
gritam com as mulheres e sua vontade prevalece na casa. Não sei a razão disso
ser assim. Mas é isso que sempre observei. Desde as cavernas. O fato é que
aquela noite a luz foi apagada às sete horas da noite quando a menininha
finalmente pegou no sono após a mãe beijar-lhe a testa e deixar o quarto.
Já comentei que sou muito rápido. A ponto de às
vezes não ser nem visto pelas pessoas. Mas nesta ocasião em especial foi mais
rápido do que o costume. Não houve tempo do grito ecoar da garganta que se
rasgava.
Devorei-a. De uma forma que não me recordo de
devorar. Não creio que sentiu dor. Não creio que sobrou alguma forma
reconhecível do que antes era Catarina. Sai dali. Precisava de mais. Muito
mais. A sede ainda era enorme.
Aprendi algo neste dia. Aprender a esperar. Não
cheguei a comentar, creio eu. Mas eu não durmo. Nunca. Durante as horas de luz
eu sempre esperei. Pacientemente. Às vezes dava a sorte de alguma criatura se
esgueirar em minha direção nas sombras do dia. Mas não era muito comum. Sempre tive
a impressão de que as criaturas conseguem pressentir minha existência.
De qualquer forma,aprendi com Catarina a esperar,de
verdade.Esperar no escuro. Talvez a maior lição de minha vida. Esperar não só a
Luz se esvair,mas esperar o momento certo para agir. Isso me manteve vivo por
todos esses anos desde que um palhaço com uma pipa e uma chave descobriu um
jeito de criar pequenas estrelas. A tal luz elétrica. Eu vagava por aquela
região quando as primeiras lâmpadas elétricas apareceram. Se ao menos soubesse
o que o tal Edson tramava...Se ao menos tivesse quinze segundos com o
desgraçado...No escuro...
- -
Outra invenção que muito me perturbou foi a tal
imprensa. Eu era apenas um mito. Uma figura folclórica nunca antes vista ou
ouvida. Sabiam de casos de mortes horrendas. Comentavam com os vizinhos. Os
povoados ficavam em alerta. Mas eu nunca fiquei no mesmo lugar por muito tempo.
Sempre fui um nômade por natureza. Desde minha primeira empreitada para o Norte
quando o tempo não era contado ainda.
Lembro-me de uma história que ficou famosa em minha
estadia na Transilvânia, quando eu vagava pela Europa Oriental. Habitei o
castelo do príncipe Vlad por alguns anos. Ele era muito parecido comigo ,em
muitos aspectos. Parecia ansiar por carnificina assim como eu. Gostava do
escuro e do silencio assim como eu. Lembro de vê-lo beber o sangue de seus
inimigos empalados no castelo.Saboreava o sangue num cálice de prata.Senti
ciúmes. Por que não me convidava para um drink?
Creio que teríamos sido bons amigos. Vlad Dracul e
eu. Mas nunca tentei uma maior aproximação com sua espécie. Não daria certo. Então
um dia deixei seu castelo, por puro tédio. Deixei um punhado de corpos
despedaçados também. Um presente meu para o príncipe. E anos depois descubro
que o infeliz virou uma lenda. Imortalizado na Historia dos homens. Pelos meus
crimes!
Mas eu não passava de uma lenda nessa época. Bons
tempos. Em que eu era mais veloz que a informação.E de repente,a informação
começou a se propagar a uma velocidade tremenda. As pessoas já me temiam antes
mesmo de minha chegada. Era a tal imprensa. Escreviam sobre mim. Nada
consistente. Nada realmente concreto. Inventaram nomes. Variava de região para
região.
Historias eram contadas. Baseadas em mim. Baseadas,
veja bem. Nenhuma se aproximava da verdade, é claro. Mas eram baseadas nos
corpos que eu deixava para trás em minha empreitada pelo mundo. Aprendi a fazer
alguns desaparecerem. Jogá-los-ia no rio ou partí-los-ia em tantos pedaços que
não poderiam ser reunidos de novo.
A polícia foi outra invenção que sempre me
preocupou também. E a tal perícia criminal. Malditos desocupados! Ao longo dos
anos alguns chegaram perto de mim. Perto demais. Mas sempre estive um passo a
frente de vocês, caros leitores. Aprendi com meus erros. Aprendi a me controlar
a ponto de cortar gargantas milimetricamente. Decepar quase cirurgicamente.
Extrair suas emoções e ceifar suas almas e fazer parecer obra de um de seus
irmãos.
Aprendi a incriminar. Plantar evidências. Enganar e
induzir o erro humano. Creio que umas centenas de pobres coitados tenham sidos
enforcados ou trancafiados por minha culpa. Implorariam piedade. Diriam que o
verdadeiro culpado era algo que veio das sombras. Um demônio ou vampiro. Pobres
diabos. Ninguém acredita nessas coisas hoje em dia.
Aprendi outra coisa importante também.
Aprendi a não matar. Poderia me esgueirar por sua
janela agora e observá-lo por algum tempo. Escondido numa fresta, numa sombra
esquecida num canto. E só relaxar enquanto as emoções emanam de você. Elas
surgem espontaneamente. Tudo que preciso fazer é esperar. Graças a Catarina.
Espero e elas logo vêm. Raiva, medo, angustia, dúvida. Ódio.E é claro. O amor.
Ah. O amor. Milhares de anos que esta terra me
conhece. E mais outros tantos milhares seriam necessários pra começar a
compreender tamanho sentimento. Se ao menos pudesse senti-lo de verdade. Uma
vez apenas. Se pudesse emanar de mim. Uma vez que fosse...
Às vezes me alimento, é claro. A sede é maior do
que eu. Mas minha sede vem sendo substituída por outra. Mais urgente. Pode soar
meio romântico. Não é minha intenção,juro! Mas minha sede por sangue vem sendo
substituída pela Sede de Amar.
E assim tenho vivido.
Sempre com sede.
Perdoem as divagações de uma Velha Presença
entediada,estimado leitor.
Agradeço sua paciência por ler este pequeno relato
de uma existência cheia de vazio e sabedoria. Agradeço se em algum momento
sentiu compaixão por mim.Não preciso dela. Nem a almejo. Mas agradeço de
qualquer maneira. Agradeço até pelo eventual ódio que poderia estar sentindo de
mim. Serei eu aquele que ceifou a vida de um de seus irmãos?
E peço que não se desespere se numa noite qualquer
você sentir um calafrio.
Uma presença a mais no quarto escuro.
Se ouvir um barulho no porão.
Se pegar um vulto correndo com o canto do olho.
Peço que não confira embaixo da cama,ou dentro do
armário antes de dormir. Poderia ser eu. Poderia estar com sede.
Peço que se acalme e apenas sinta. Sinta bastante.
Pode ser medo. Amor. Terror. Apenas sinta.
Eu estarei lá.
Esperando.
No escuro.