Hoje outro moleque sumiu da
rua. Um mais magrinho. Ficava sempre lá
jogado no canto ou correndo de um lado pro outro com o copo de Guaravita na
mão. Falando sozinho. Gesticulava muito. Quase morria atropelado umas vinte
vezes por dia. Era assim que ele vivia.
Eu o chamava de Cartolinha.
Alguma coisa no jeito dele rir lembrava o velho poeta. Eu faço isso com
frequência. Dou nome pra eles. Pode parecer loucura e talvez seja. Mas me dá
uma sensação egoísta de bem estar, sabe? Se eu dou nome a eles, eles se tornam
um pouco mais reais. Um pouco assim mais humanos, tá me entendendo? Se eu dou
nome pra eles, eu garanto algum direito qualquer que eles não tenham tido nunca
na vida. Um direito assim de...existir. De ser chamado e tratado que nem gente.
E hoje esse também sumiu da rua.
Semana passada foram dois. O Acerola que lembrava o molequinho do “Cidade de
Deus” e o Tiaguinho que era a cara do filho de dona Rosineide. Mês passado
foram mais uns cinco. O Sem-Dente, o Barriga, O Encrenqueiro, a Ana Maria e a
Capitu. Todos naquela fase doida que todo mundo passa entre o final da infância
e o começo da adolescência. Onze, doze, quinze anos.Um inferno. Mesmo quando
não te negam casa, comida nem roupa lavada.
Mesmo quando o craque não está lá
presente carcomendo a sua alma. Inebriando a sua consciência. Transportando os
seus medos mais profundos pra algum lugar escuro lá no fundo da tua
mente.Fazendo você perder a trilha que te guiava pra você mesmo. Já estive lá.
Não é o tipo de lugar que gostaria de voltar. Boa parte do tempo pelo menos.
Esta noite, após as duras constatações as quais meus velhos olhos foram
guiados, não sei mais. Gostaria de esquecer. De nunca ter visto. De não saber.
De nunca ter dado nome a nenhum deles. De nunca ter me importado nem um pouco
com coisíssima alguma.
De nunca ter sentido o Cheiro. O
Cheiro Maldito que impregna minha janela nesse momento. Entra pelas fossas
nasais e toca um sino estridente no meu cérebro, sacode cada refeição da semana
que ainda insiste em permanecer nas reviravoltas das minhas tripas. O Cheiro
que penetra nas minhas roupas estendidas no varal, que me acorda no meio da
noite suando frio. Que atrai todo tipo de mosca esverdeada que eu nunca vi. O
Cheiro. Queria nunca ter sentido. Mas depois que senti... Depois que entendi
sua procedência, ele nunca mais me deixou. Como se a essência demoníaca tivesse
ido morar bem embaixo do meu nariz.
De um dia pro outro, comecei a me
dar conta da presença do Cheiro. No caminho pro trabalho. Na Igreja. Na mesa do
bar. Em toda parte. Devagarzinho, o Cheiro passou a se tornar uma fascinação
minha. Era mau agouro não senti-lo de manhã antes de sair de casa. Eu tinha um
mal estar quando não o sentia por muito tempo. Pensava nele no almoço. Dormia
com ele embalando meus sonhos escuros. Aos poucos o Cheiro foi se tornando
parte do meu ser. Uma extensão da minha alma, sei lá. Era minha obsessão, meu
segredo, minha maior preocupação. Meu amor e meu ódio. Fazia esquecer os meus
filhos. Da minha ex-mulher. Daquela porrada de conta atrasada.
Só não me fazia esquecer os
meninos da rua. De um jeito mórbido que só compreendo agora...o Cheiro também me
fazia lembrar deles. O que me leva de volta ao começo do relato. Hoje outro
moleque sumiu da rua. Cartolinha sumiu da rua. E ninguém viu. Só eu. E o Cheiro.
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